Como Anguilla, pequena ilha no Caribe, consegue se destacar na gastronomia mundial

Apesar do isolamento e a dificuldade da produção de certos alimentos, o destino revela uma culinária autêntica em hotéis de luxo e barracas pé na areia

Pratos à base de peixes e frutos do mar, a exemplo de lagostim e dourado-do-mar, compõem a culinária de Anguilla
Pratos à base de peixes e frutos do mar, a exemplo de lagostim e dourado-do-mar, compõem a culinária de Anguilla Divulgação

Saulo Tafarelodo Viagem & Gastronomia

Anguilla

É um clichê: da janelinha do avião, antes mesmo de colocar os pés na ilha, os visitantes que chegam em Anguilla se surpreendem com as cores hipnotizantes do mar azul-turquesa.

Mas, para além da beleza e da temperatura agradável da água, que é um convite para cliques para as mídias sociais e um descanso longe do continente, o mar que banha a diminuta ilha caribenha também garante boa parte do sustento deste pedaço de terra.

É nos arredores das praias mais bonitas do mundo, preenchidas por uma areia branca fofa e palmeiras que enquadram um cenário clássico do Caribe, que pescadores profissionais e familiares saem com suas embarcações concisas e pescam variados peixes e frutos do mar que compõem a culinária local.

Dos barcos, peixes e mariscos seguem para as casas dos apenas 15 mil habitantes e também para as cozinhas dos restaurantes locais e dos hotéis superluxuosos, que transformam a ilha paradisíaca em um destino ideal para quem busca sol e sossego aliados a acomodações caprichadas e uma gastronomia de excelência.

Com tantos predicados pelas belezas naturais – ela foi eleita recentemente uma das 25 melhores ilhas do mundo pela Travel + Leisure – Anguilla recebe também, recorrentemente, a alcunha de “capital culinária do Caribe”.

Em seus singelos 91 km², há cerca de 100 restaurantes, contando com casas locais, famosas barracas de praia e restaurantes de primeiro escalão nos hotéis sofisticados.

Mas como uma ilha de pouquíssimos habitantes, que até pouco tempo atrás tinha um caráter “isolado” em relação aos outros territórios vizinhos, consegue se destacar no cenário gastronômico caribenho?

Autenticidade social e gastronômica

“A diferença mais relevante comparada a outros destinos é que Anguilla não é tão cosmopolita, mas manteve o charme e a capacidade da autenticidade”, afirma Bruno Carvalho, chef executivo do Cap Juluca, hotel cinco estrelas que opera na ilha sob a batuta da rede Belmond e é considerado um dos melhores resorts do mundo.

São quatro diferentes restaurantes que servem refeições do mais alto escalão para quem chega ao Cap Juluca, incluindo não-hóspedes.

Os espaços misturam referências internacionais com pitadas locais, incluindo o Cip’s by Cipriani, irmão do cultuado restaurante italiano Cipriani em Veneza, assim como o Pimms, que serve peixes frescos e clássicos caribenhos, e o The Cap Shack, uma barraca de praia mais sofisticada que serve comidinhas para serem apreciadas na areia.

Barraca da praia do Cap Juluca, o The Cap Shack, que serve comidinhas e drinques na areia / Divulgação

Com uma bagagem que envolve trabalhos em hotéis e restaurantes estrelados em Portugal, Dubai e Seychelles, Carvalho destaca que Anguilla conseguiu manter uma linha distante de outros destinos caribenhos que operam resorts all inclusive, os quais abriram suas fronteiras para uma grande massa de turistas.

“É aquela magia que não se consegue criar com edifícios ou estradas melhores. É aquilo: quando você vai a uma ilha, vai a uma praia e sente que o mundo parou um pouco. Em termos de comida, é a mesma linha”, ressalta o profissional.

Neste ano, no final de julho, o hotel prepara o primeiro “Culinary Shores”, evento gastronômico com chefs convidados de diferentes lugares do mundo. O primeiro convidado, inclusive, é Nello Cassesse, chef que comanda a estrelada cozinha do Cipriani no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. O evento promete intercâmbios de cozinhas, jantares na areia da praia e oficinas culinárias.

Cozinha local

Assim, ao lado dos hotéis superluxuosos, a ilha mantém restaurantes e shacks (barracas de praia) comandadas pelos próprios moradores locais. Os estabelecimentos são bastante simples, mas é unanimidade entre turistas e nativos: come-se pratos para lá de saborosos e bem feitos.

Um destes locais é o Tasty’s, restaurante comandado pelo chef anguilano Dale Carty próximo de Sandy Ground, local que possui uma das mais famosas lagoas de sal de Anguilla. Quando menino, ele aprendeu a culinária regional ao lado da avó e depois chegou a trabalhar no Malliouhana, primeiro resort de luxo da ilha, inaugurado em meados dos anos 1980.

Após um período em que treinou e trabalhou na França, Carty voltou a Anguilla com técnicas do país europeu e abriu no final da década de 1990 o restaurante caribenho Tasty’s. Hoje, é quase uma instituição na ilha e todos conhecem o chef e o espaço.

Chef Dale Carty na cozinha do Tasty’s, um dos restaurantes mais conhecidos da pequena ilha / Divulgação

De sua cozinha saem pratos enraizados na tradição mas com influências internacionais. “Os pratos mais pedidos no Tasty’s são à base de crayfish (lagostim) e o red snapper (luciano-do-golfo), porque são sempre frescos”, afirma Dale. Refeições grelhadas e ensopados são o que ditam a culinária na ilha.

Entre os ingredientes, o chef lista o sal natural, “que temos em abundância em nossa lagoa”, e muitas ervas, assim como carne de cabra que é bastante consumida – não é difícil ver algumas delas soltas pelas ruas da ilha.

Além do Tasty’s, outros restaurantes locais também são conhecidos por todos da ilha. Segundo moradores, nomes como Ember, Jacala e E’s Oven são imprescindíveis para se ter um gostinho de Anguilla. As casas são modestas e autenticidade é a chave, em que fogem dos tradicionais restaurantes dos grandes hotéis e são considerados locais “off resorts”.

Em Anguilla, ir aos famosos shacks, barracas de praia, também é tido como essencial para se ter um sentimento de estar de fato no Caribe.

Entre os nomes, é senso comum ouvir Gwen’s Reggae Grill, Sunshine Shack e o Elvis’s, que ficam em algumas das praias mais bonitas da região e servem comidinhas para serem apreciadas na beira da praia, como costelas e frangos ao molho barbecue, porções de bolinhos fritos de caramujos do mar e filés de peixes da ilha com saladas – e, claro, o Rum Punch, famoso drinque caribenho.

Gwen’s Reggae Grill: prato de filé de “snapper” com acompanhamentos e Rum Punch, clássico drinque caribenho com rum / Saulo Tafarelo

Adaptabilidade

“Digo que Anguilla tem uma cena culinária única e completa. Sinto que os anguilanos são realmente orgulhosos e apaixonados por esta bela ilha. Eles são muito bons cozinheiros, então podem adaptar qualquer cozinha à deles”, conta Emmanuel Calderon, chef executivo do Four Seasons Anguilla, hotel cinco estrelas situado entre as praias de Barnes Bay e Meads Bay, que segue o selo de qualidade da marca.

Mexicano, o chef trabalhou no ramo de alimentos e bebidas em outros hotéis da rede pelo mundo antes de desembarcar em Anguilla e destaca que a adaptabilidade com os ingredientes é um dos traços locais.

“Podemos ver [essa adaptação] pelo número de pequenos restaurantes por aqui, indo da culinária local à italiana, francesa, latina, tex mex, asiática. É incrível”, diz o chef.

Peixes da ilha são adaptados em receitas de outras influências, como sashimis de pescados do dia; na foto, sashimi do Zemi Beach House, hotel em Shoal Bay / Saulo Tafarelo

A unidade do Four Seasons também oferece uma gastronomia refinada a nível internacional, que preza pelos produtos e tradições locais.

Restaurante contemporâneo, o Salt oferece peixes e frutos do mar locais, como o ceviche do chef Calderon, que é uma das assinaturas do local e é feito com pescado da costa, assim como lagostim, carne de cabra, crudo de caramujo marinho e atum local.

Salt, restaurante contemporâneo do Four Seasons Anguilla que serve pratos à base de peixes locais e carnes vindas de fora / Saulo Tafarelo

Outros bares do hotel preparam drinques caprichados ao lado de comidinhas na grelha ou de inspirações caribenhas e o Sunset Lounge é ponto procurado para apreciar o pôr do sol da ilha.

Celebração da culinária

Mirando abraçar o público de visitantes internacionais às tradições culinárias locais, em maio deste ano ocorreu a primeira edição do Anguilla Culinary Experience (ACE), festival gastronômico de cinco dias que reuniu chefs locais e de outros países, principalmente do Estados Unidos e Canadá.

Um seleto público participou do evento – os pagantes eram principalmente turistas, especialmente os norte-americanos, que frequentam Anguilla há um certo tempo e que aderiram aos pacotes do ACE de forma a apreciar ainda mais a culinária local.

A ideia do festival foi concebida pela primeira vez em 2016 por Wendy Freeman e seu marido, Neil Freeman, donos de uma empresa de banco de investimentos e hipotecas de imóveis comerciais de Chicago.

“Surgimos com a ideia como forma de destacar a excelência da culinária de Anguilla, seus ingredientes frescos e sabores, e também trazer para a ilha pessoas que não estavam tão familiarizadas com as proezas culinárias daqui”, diz Wendy, que atua como co-presidente do festival.

O evento foi marcado por jantares sofisticados, festa à beira da praia com comidinhas típicas e vinhos rosé, churrasco na areia e ainda outras atividades, como aulas de ceviche, degustação de rum e programas culturais tradicionais da ilha. Os pacotes variaram de US$ 450 a US$ 1.250.

Os principais hotéis da ilha, como o Cap Juluca, Four Seasons, Malliouhana, Zemi Beach House, entre outros, abriram suas portas para o evento, assim como alguns restaurantes locais.

Com projeção de ser um evento anual, o feedback, de acordo com Wendy, foi positivo. “Trazer chefs de renome internacional para a ilha para cozinhar com chefs locais foi um destaque. As colaborações chamaram muita atenção para os chefs e para o que estava acontecendo em Anguilla”, relata.

Uma parte dos rendimentos do festival, inclusive, foi destinada a financiar a Equipe Culinária Nacional de Anguilla. Fundado há mais de 25 anos, o grupo compete em eventos internacionais de alimentos e bebidas e é formado por jovens que querem seguir uma carreira na frente das panelas.

“Muitas pessoas conhecem e amam Anguilla por suas praias fabulosas, povo acolhedor e serviços personalizados, mas não exploraram totalmente a culinária da ilha. Achamos que Anguilla é a capital culinária do Caribe por conta de seus ingredientes espetaculares, aprimorados pelos sabores e origens diversas dos chefs locais”, completa Wendy.

Principais ingredientes

A base da culinária e da gastronomia de Anguilla tem sempre a ver com os produtos do mar. Do que vem da água, inclusive, um crustáceo se destaca na cena local: é o chamado crayfish, ou lagostim na tradução em português.

“É uma variedade de lagosta pequena, conhecida em outras áreas como lagosta manchada, que é menor do que a lagosta caribenha, mas maior em sabor e doçura”, explica o chef Emmanuel Calderon.

Garoupas, atuns, mahi (dourado-do-mar), red snapper (luciano-do-golfo) e peixe-espada completam o time dos peixes mais comuns pescados e consumidos na ilha.

Ao contrário, porém, a produção agrícola é muito reduzida. Isso se dá em partes pelo tamanho do território, pela qualidade do solo e também pela demanda. Na ilha, encontra-se crescimento de tomates, algumas plantas cítricas, pepino, abobrinha e frutos como cocos, mamão, fruta-pão, graviola e manga, como lista Emmanuel.

Mas todas as produções são muito reduzidas. A produção de tomate, por exemplo, é restrita a cerca de três produtores em um espaço aproximado de apenas meio hectare cada.

“A produção de tomate na ilha consegue durar um bom tempo para nós. Quando acaba, temos que recorrer ao mercado dos EUA, que nos dá maior garantia”, revela Bruno Carvalho, do Cap Juluca.

Interessante é que os tomates que crescem na ilha possuem um diferencial, como o chef executivo conta. Pelas características do território, que possui lagoas de sal e já foi um importante ponto exportador do mineral no passado, o tomate que cresce em Anguilla acaba se destacando pelo sabor acentuado quando comparado ao fruto trazido de outros lugares.

Entre as poucas coisas que crescem na ilha também há espaço para alimentos endêmicos, como é o caso das “sea grapes”, espécie de alga verde comestível que tem sido introduzida no cardápio dos hotéis em amenities e em certos pratos para dar mais autenticidade, como diz Bruno.

“Podemos encontrar uma variedade de pimentas de tempero local, uma forma de habanero ou scotch bonnet com um sabor muito característico, mas não tão picante quanto parece”, complementa Emmanuel.

Principais pratos

Mantendo uma certa autenticidade aos olhos dos locais e dos chefs de grandes hotéis, é claro que a ilha não fica imune à influência internacional, vinda majoritariamente do próprio Caribe, que por sua vez também foi influenciada por várias culturas ao longo dos séculos.

Os tradicionais Johnny Cakes (massa que se assemelha a um pão de acompanhamento), pargo no vapor, ensopado de carne de cabra, conkies (alimento à base de fubá cozido a vapor em folha de bananeira), arroz com feijão guandu (chamado de rice and peas) e bolinhos fritos de caramujos marítimos (conch fritters) são alguns dos pratos encontrados por aqui e pelo Caribe.

Porção de conch fritters do Gwen’s Reggae Grill. Bolinhos fritos de caramujos do mar são típicos da ilha e do Caribe / Saulo Tafarelo

O churrasco também está bastante presente na ilha. “Os anguilanos adotaram o churrasco e todos os acompanhamentos, transformando-os em sua própria versão. Por isso, costelas de porco, carne de porco condimentada, frango grelhado, lagosta grelhada e crayfish, juntamente com acompanhamentos como salada de repolho, mac & cheese e batatas fatiadas fazem parte das raízes culinárias desta ilha”, elenca o chef executivo do Four Seasons.

As carnes, porém, diferente dos peixes, somam um desafio a mais para chegar na ilha.

Desafios logísticos

“Tentamos trabalhar aqui com o que chamamos de quilômetro zero e trabalhamos com a maior parte dos produtos em termos locais. Caso não consigamos alimentos imediatamente da própria ilha, trazemos de Saint-Martin”, diz Bruno Carvalho, em que cita o território da ilha vizinha à Anguilla.

E as carnes entram neste aspecto de recorrer aos mercados internacionais, uma vez que não há produção na ilha, com exceção de frangos e ovos.

“O restante tem que vir de fora, de longe. A carne do Cap Juluca vem dos Estados Unidos e da Irlanda”, revela o profissional, que diz que produtos premium, como a carne wagyu, chegam de avião, enquanto os produtos mais regulares vão de barco.

Emmanuel Calderon, do Four Seasons Anguilla, também admite que o fornecimento de alimentos é uma das maiores questões na ilha. “O abastecimento é uma grande questão; no entanto, com os desafios vêm muitas oportunidades”. Ele cita que tem aprendido a usar ingredientes únicos do Caribe e presentes na ilha, como o Callaloo, prato de vegetais variados, e a fruta-pão.

O chef executivo do Four Seasons ainda revela que as barreiras locais são complementadas com produtos básicos e outros frutos do mar trazidos principalmente da América continental e da Europa.

Menus sazonais e mais flexíveis também são uma realidade. “A grande dificuldade é a logística. Se falhar a entrega de um produto, tenho que trabalhar em termos logísticos para reorganizar o menu pois sei que não vou ter o produto pelos próximos dias. Assim, temos que ter uma flexibilidade que nos permita ter uma reação rápida para que consigamos organizar os menus sem afetar a qualidade”, relata Bruno.

Mesmo a base alimentar vinda do mar, Anguilla é um micromercado, como o profissional do Cap Juluca. “O que conseguimos fazer foi arranjar uma sinergia com os pescadores locais para conseguir não só desenvolver a parte econômica em termos de ilha, mas também para termos uma garantia de fornecimento mais efetivo”.

Ele conta que a frota de barcos e de pescadores era muito arcaica, mas que neste momento há dois barcos que fornecem peixes para o hotel que são mais equipados e que dão mais garantias de oferecer peixes diariamente, independente das condições climáticas.