Provence: os pequenos vilarejos medievais e a cidade que inspirou Van Gogh

Rodar o sul da França de carro é se deparar com uma ligação admirável da história com a arte; nesta viagem encontrei campos de lavanda, pedreiras magníficas e a comuna onde nasceu Nostradamus

Daniela Filomenodo Viagem & Gastronomia

Provence, França

De maneira geral, falar da Provence nos remete imediatamente a um ambiente cenográfico: os campos de lavanda dominam as paisagens e enchem os feeds das mídias sociais de fotos deslumbrantes. Tudo parece um quadro, com pinceladas feitas com maestria.

De fato, uma viagem à região não escapa muito disso, onde a realidade é melhor do que a ficção. Durante as gravações do CNN Viagem & Gastronomia, a Provence foi para mim um estímulo para todos os sentidos.

Além dos cinco sentidos do corpo humano, outros deles também foram aguçados: o sentido histórico, cultural, gastronômico e o do cuidado com a terra e com o próximo, já que aqui temos um gostinho de que a natureza e sua biodiversidade é uma das riquezas mais essenciais para vivermos.

Jornada pela Provence

Nas andanças entre cidades, comunas e vilas, duas características superimportantes da Provence surgem no meio do caminho: a região é um celeiro de grandes talentos da arte mundial e cada parada é como uma aula de história a céu aberto.

Por mais que a França seja um país pequeno quando comparado ao Brasil, rodei quase mil quilômetros de carro apenas dentro da Provence. Esta é uma das melhores maneiras de apreciar os cantinhos mais charmosos e de descobrir paradinhas que não estavam no roteiro – uma das melhores partes da viagem!

Assim, voltei daqui com o sentimento de que me permiti lançar a experiências que se mostraram novas.

Em Arles, pude ver com meus próprios olhos o quanto a história desempenha um papel intrínseco no entorno: as ruínas e edificações romanas que sobrevivem por aqui nos dão um gostinho da Itália em pleno território francês.

Fora isso, os campos de lavanda de Montclus, as pedreiras magníficas de Les Baux e os encantos minuciosos de Saint-Rémy-de-Provence completam uma jornada feita para ficar para sempre na memória.

Costumo dizer que um lugar bom é aquele que te toca de alguma maneira. Saí da Provence desta maneira: mais feliz, mais calma e já querendo voltar!

Arles: encontro entre história e arte

Chegar em Arles é ficar encantado. É a cidade mais romana de toda a França, dados seus pontos turísticos e históricos que são remanescentes dos tempos romanos na Provence. Durante a dominação romana no território, a cidade foi um ativo porto fluvial.

Com cerca de 52 mil habitantes, a cidade fica a uma hora de Marselha, capital da região. Além dos vestígios romanos, como o teatro e o anfiteatro, Arles ainda conta com o espírito artístico e criativo das artes, principalmente de Van Gogh.

O pintor pós-impressionista holandês morou aqui durante um ano, entre 1888 e 1889, período suficiente para ser o mais produtivo de sua carreira: foram cerca de 300 obras entre pinturas e desenhos.

Por aqui conseguimos ter um vislumbre ao revisitar alguns pontos da cidade que ficaram eternizados em seus quadros. Aqui é assim: sentimos a energia da cidade caminhando, absorvendo a cultura ao andar pela história.

Teatro e Anfiteatro de Arles

Anfiteatro, ou Arena de Arles, segue com agenda de espetáculos e visitas / CNN Viagem & Gastronomia

Cartões-postais da cidade e resquícios significativos da presença romana na região, a visita ao Teatro Romano e ao Anfiteatro, chamado também de Arena, são indispensáveis.

Aqui entendemos as influências da região e também nos deparamos com um pedaço muito bem conservado da história mundial.

É incrível como, mesmo após dois mil anos da construção, o anfiteatro continua preservado, recebe visitantes e ainda sedia algumas aulas e eventos. Ou seja, permanece com sua função.

Com capacidade para mais de 20 mil pessoas, na Idade Média o local serviu quase como uma cidade, já que foi lugar de proteção para tempos violentos.

Podemos andar pelo anfiteatro tanto entre seus largos corredores com grandes colunas quanto nos “andares” entre as fileiras onde os visitantes se sentavam.

É notável como a estrutura como um todo é semelhante ao Coliseu, mas não é por acaso: o plano da Arena de Arles é o mesmo da estrutura de Roma.

Logo ao lado da arena fica o Teatro romano de Arles, que comportava 12 mil pessoas e recebia apresentações artísticas diversas naqueles tempos. Se formos traçar um paralelo, eram apresentações semelhantes às óperas, com espetáculos para entreter a população.

Ambos os monumentos fazem parte da lista dos Patrimônios mundiais da Unesco. A entrada no teatro e no anfiteatro pode ser feita mediante pagamento de uma taxa combinada que sai por 9 €.

Após a visita, o que mais me chamou a atenção foi realmente a manutenção e a restauração destes monumentos, que se mantêm com características e até funções originais mesmo no século 21.

E outra surpresa: ao redor destes locais, principalmente do anfiteatro, há vendinhas e comércios típicos com queijos tradicionais, lembrancinhas e doces, como o nougat feito com mel. É uma perdição!

Place du Forum e Café Van Gogh

Por falar em ruínas romanas, o centro histórico da cidade é lar da Praça do Fórum, onde restam algumas colunas romanas do tempo em que o local era o coração de Arles. Era aqui parte do centro econômico e político da administração romana na cidade.

Mas o que mais impressiona fica, na verdade, debaixo dos nossos pés: a praça conta com um enorme subsolo com alguns arcos e galerias a seis metros abaixo do nível da rua. Há cerca de dois mil anos foi descoberto que o fórum estava cedendo e criptopórticos foram construídos para sustentar a estrutura.

É muito bacana ver como é a praça por baixo e como se dava o subterrâneo, onde a umidade e as temperaturas mais baixas também eram propícias para que grãos fossem armazenados.

Além de tudo, o local é muito silencioso: em alguns momentos de minha visita, era possível escutar apenas o gotejar da água. É uma atividade interessante para quem gosta de arquitetura e engenharia, em que a inteligência arquitetônica surpreende. O tíquete custa por volta de 4,50 €.

Daniela Filomeno no Café Van Gogh, no centro de Arles / CNN Viagem & Gastronomia

Já de volta ao nível do solo fica outra agradável parada: o Le Café Van Gogh, chamado originalmente Le Café La Nuit. O local foi eternizado em um dos quadros do artista holandês batizado de “O Terraço do Café na Place du Forum, Arles, à Noite”.

Diz a história que Van Gogh frequentava assiduamente o espaço. Dentro do café há até uma reprodução da obra que deu fama ao lugar.

É uma boa parada para se sentir dentro do quadro junto de um vinho harmonizado com queijo, como manda a Provence.

Os campos de lavanda de Montclus

Uma das bases para aproveitar melhor a Provence foi a comuna de Goudargues, onde aluguei uma casa e vivi dias como uma pessoa local. Este esquema nos propicia curtir a região de uma maneira menos apressada e com um toque mais autêntico, sem um ritmo totalmente turístico.

A partir de Goudargues visitei pequenos vilarejos, outras comunas e cidades, descobrindo paradinhas fora do roteiro em cantinhos superespeciais. E um destes locais é Montclus, uma vila cuja contagem de pessoas se resume a pouco mais de 200 habitantes.

Aqui há alguns campos de lavanda que, além de fotogênicos, carregam a alma da Provence. É como se fosse uma poesia: paramos o carro ao lado da estrada e entramos nos campos.

Quando andei entre as lavandas pude entender o fascínio do que é estar aqui. É um estímulo para os sentidos, pisamos na terra e sentimos a textura e seus aromas. É como se inserir na natureza.

Logo atrás dos campos, uma surpresa digna de filme: o vilarejo medieval dá as caras e nos convida a descobrir seus becos e construções de séculos passados.

É um local bem pacato com uma predominância idílica que, de tão pequeno e recluso, tem até portão para entrar. Suas ruas são formadas por várias casinhas e nem parece que estamos numa comuna, mas sim nas redondezas de um castelo.

Com edificações datadas dos séculos 10 ao 12, como a abadia, a sensação é de uma cidade cenográfica. A aldeia exala um estilo de vida rural com a presença do rio Cèze logo ao lado, um braço do rio Rhône.

Les Baux: pedreiras e arte

Se Montclus encanta por sua simplicidade e paisagens, Les Baux-de-Provence adiciona um toque a mais: a arte. Aninhada entre Arles e Avignon, a pequena comuna, que não passa dos 400 habitantes, é considerada uma das mais bonitas da Provence e está dentro do chamado Vale do Inferno.

O título provém do cenário ao redor, todo revestido de pedras e pedreiras, e também por ser um local bem quente. Vilarejo medieval, andamos em meio a construções que datam de cerca de mil anos. Assim, ela carrega uma beleza peculiar que só é possível ver aqui.

Para onde olhamos vemos detalhes dignos de serem contemplados. Imagine morar na história? Les Baux é assim: hoje uma pequena vila turística que consegue manter o charme nas paredes e nas montanhas do entorno.

Interessante pensar que no verão mais de mil pessoas passam a morar nas casas de veraneio, mas no inverno é o contrário: não sobram nem 200 indivíduos.

Curiosidade: a bauxita, uma mistura natural de óxidos de alumínio considerada um mineral, foi descoberta aqui nos idos de 1820. O mineral foi nomeado tendo como base o título da comuna, Les Baux.

Carrières des Lumières

É em meio a este cenário que fica o Carrières des Lumières, espetáculo que envolve luzes, músicas e efeitos em uma pedreira desativada.

As pedreiras onde estão instaladas o show audiovisual ficam na estrada que liga Baux à comuna de Maillane e foram escavadas ao longo dos anos para extração de calcário para a construção das edificações do vilarejo.

Hoje, o local é considerado um núcleo de arte digital com mais de 7 mil m² de projeções. Estar aqui é se deparar com a grandiosidade do entorno: caminhamos entre as enormes paredes e colunas que formam a pedreira, onde as imagens também são projetadas.

É uma exposição imersiva em meio a um cenário incrível, em que as temáticas dos espetáculos mudam periodicamente.

Até janeiro de 2023 fica em cartaz “Venice, La Serenissima“, mostra que nos leva a presenciar tesouros artísticos e arquitetônicos de Veneza por meio da tecnologia.

Por 40 minutos somos transportados diretamente para os canais, ruas, praças e igrejas da cidade italiana.

Durante o mesmo período, uma exposição imersiva sobre Yves Klein também toma lugar na pedreira, em que mergulhamos nas obras e no tom de azul que foi nomeado em homenagem ao artista francês.

Os tíquetes individuais para apreciar ambas as exposições em conjunto custam 14,50 €.

A elegância de Saint-Rémy-de-Provence

Por fim, a pouca distância de Les Baux, fica Saint-Rémy, outra das tantas belas comunas que fazem do sul da França um local especial.

Escolhi passar por ela por três motivos: por carregar o charme de uma cidade pequena da Provence, pela sua gastronomia e também pela ligação com a história, já que Nostradamus e Van Gogh tiveram passagem por aqui.

A comuna é lar para cerca de 10 mil pessoas e fervilha de bares, bistrôs, brasseries e lojinhas ligadas à moda. Em poucas palavras, Saint-Rémy pode ser descrita como fofa e agradável, em que há locais para serem vistos não somente no centro mas também no entorno.

A dica aqui é passear sem roteiro pré-definido pelo centro e se surpreender com a vida local acontecendo. Às quartas-feiras procure pela feira livre matinal e experimente alguns produtinhos da região.

Como nas outras comunas e cidades acima, andar por Saint-Rémy a pé é a melhor opção, onde também acabamos encontrando muralhas medievais e resquícios de séculos passados, como uma janela de um hospital inaugurado em 1646, onde Van Gogh ficou internado por um bom período a partir de 1889.

Vários quadros foram pintados pelo artista neste meio tempo, quando a cidade serviu de inspiração para suas pinceladas, incluindo “A Noite Estrelada“, uma de suas obras mais famosas. Ela retrata a vista da janela do quarto do hospital pouco antes do nascer do sol.

O astrólogo, médico e vidente Nostradamus também tem ligação com Saint-Rémy: a comuna foi o local de seu nascimento, onde hoje podemos ver uma fonte em sua homenagem e uma rua que leva seu nome.

Para terminar a viagem da maneira que mais gosto, escolhi fazer uma paradinha em um bar de queijos pelas ruelas da cidade. E a escolha não poderia ter sido melhor: sentei-me numa das mesinhas da La Cave Aux Fromages, bem no coração de Saint-Rémy, e degustei sem pressa uma tábua de queijos com vinhos e azeites.

Foi um achado! A cave da casa é do século 12, onde queijos e vinhos convivem harmoniosamente. Deparei novamente com os legados que a Provence deixou em mim: de curtir a viagem sem pressa e de me permitir viver experiências muitas vezes fora da minha zona de conforto.