Entre queijos e vinhos: as descobertas pela Quinta de Lemos, na região do Dão

O centro de Portugal nos aguarda com bons vinhos e iguarias típicas em cidadezinhas históricas repletas de vilarejos charmosos. Já pensou como é dormir dentro de um restaurante estrelado?

Daniela Filomenodo Viagem & Gastronomia

Dão, Portugal

Após percorrer os cantos mais especiais de Portugal, indo de grandes a pequenas cidades que envolvem deleites gastronômicos e paisagens históricas esplêndidas, começo este texto com um clichê: quanto mais atravessamos o país, melhor fica a viagem.

Após conhecermos o Douro e seguir até sua foz, na cidade do Porto, agora avançamos para mais uma região que dá uma lição de mesa caprichada, gastronomia ímpar e incríveis experiências.

Refiro-me ao centro de Portugal, onde a Região Demarcada do Dão paira entre vinhedos renomados e nos convida a levarmos o lema da vida boa.

Aqui, vilas e vilarejos históricos carregam peculiaridades que enchem nossos olhos, perfumam nossas narinas e nos deixam com anseio de mais. Muito tradicional com seus vinhos de qualidade, o Dão é a primeira região demarcada de produção de vinhos não licorosos do país, título atribuído em 1908.

Situado na província portuguesa de Beira Alta, o Dão é berço da Touriga Nacional, uma das castas mais emblemáticas de todo o país e que produz excelentes rótulos consumidos no mundo todo.

Quinta de Lemos e achados

Por falar em vinhos, enquanto gravava a quarta temporada do CNN Viagem & Gastronomia na região do Dão, acabei por me deparar com um dos principais achados de toda a viagem: a Quinta de Lemos.

Situada na freguesia de Silgueiros, na cidade de Viseu, a quinta me surpreendeu por vários motivos: além de seus vinhos excelentes, visitar a vinícola é uma experiência à parte. Mergulhamos na produção da bebida enquanto somos agraciados com uma arquitetura arrojada e um restaurante estrelado pelo guia Michelin.

Quando estamos aqui, entendemos que a quinta não é somente uma vinícola, mas sim um propósito, uma vez que conta com quartos para convidados, restaurante estrelado e pessoas com uma filosofia de vida. É comida, vinho, hospedagem e uma atmosfera bem-vinda ao redor de pessoas.

Além disso, pude me deliciar um pouco mais com algumas iguarias da região. Mangualde é um pequeno município próximo de Viseu que, além de casinhas charmosas e um estilo de vida bucólico, nos presenteia com queijos da Queijaria Vale da Estrela e com o típico pastel de feijão.

A Quinta: arquitetura e vinhos

Silgueiros é uma simpática freguesia que se encontra no município de Viseu, bem ao centro de Portugal, na sub-região do Dão. Pela cidade nos deparamos com o encanto de uma atmosfera medieval, com ruas recheadas de casas antigas e palacetes que foram da nobreza.

Situada a 100 km da fronteira com a Espanha e a cerca de 325 km da capital Lisboa, Viseu ainda nos exibe construções forradas de pedras de granito e praças e jardins arborizados, como no Largo da Sé, morada da Igreja de Misericórdia de Viseu.

Assim, é em meio a esse ambiente histórico que fica a Quinta de Lemos, um contraponto a todos os aspectos mencionados acima. Ao chegarmos na propriedade, nossos olhos já saltam para o edifício principal, uma construção supermoderna e arrojada – impossível não comentar sobre sua arquitetura.

O edifício foi desenhado pelo arquiteto Carvalho de Araújo a pedido do grupo Celso de Lemos, e o plano inicial era apenas a concepção de um restaurante refinado.

Da ideia nasceu o Mesa de Lemos, hoje estrelado com uma estrela Michelin, mas também surgiram dormitórios e espaços comuns para que convidados pudessem vivenciar tudo que essa região possui de calmaria, gastronomia e, claro, de vinhos.

E o resultado deu certo: logo de fora já percebemos que a construção se enquadra perfeitamente na paisagem, que segue a topografia do terreno. Sua estrutura foi definida a partir dos principais pontos de vista sobre as vinhas, tendo a luz natural como uma das protagonistas.

A luz entra no edifício a partir das grandes janelas de vidro que cercam toda a construção, e vão do chão ao teto. Quando estamos na área das vinhas, logo em frente ao edifício, conseguimos notar que os vidros refletem as nuvens e o céu, criando uma harmonia interessante.

Dentro, temos um choque de modernidade: uma enorme pedra nos dá as boas-vindas ao interior e uma recepção informal conta com placas de concreto. Inclusive, o concreto e as linhas retas predominam, e é inevitável não percebermos o contraste com a paisagem de fora.

Dormir num restaurante Michelin

Interessante é que o espaço, além do restaurante, conta com sete quartos, que são abertos apenas para convidados. Digo que quem dorme por aqui acorda literalmente dentro de um restaurante estrelado.

Como parte das gravações do CNN Viagem & Gastronomia, pude pernoitar na quinta. Mas como é ficar por aqui? Quando abrimos a persiana e vemos a vista, entendemos o que o projeto quer dizer.

Os quartos também seguem a linha da construção: todos com concreto aparente, são espaçosos, possuem banheiras e pias feitas de grandes pedaços de pedras de granito e garantem vistas incríveis para a natureza com os grandes vidros – alguns quartos possuem até terraço com pequeno deque que se abre para o gramado.

Como manda a região, o local ainda conta com espaços para degustação de vinhos. Além de experiências mais exclusivas para os convidados, a quinta também fica aberta para o público em geral, assim como seu restaurante.

Visitas gratuitas à adega até programas mais personalizados, como degustações, trilhas para caminhada e piqueniques podem ser combinados com administração – a adega e a loja abrem todos os dias úteis e aos sábados.

O restaurante: Mesa de Lemos

Aberto ao público em geral, o Mesa de Lemos é como uma comemoração à vida em torno da boa mesa junto de excelentes vinhos. Em 2019, foi agraciado com uma estrela Michelin, fato que se repetiu em 2020 e 2021.

Natural da região, o chef Diogo Rocha é quem comanda as panelas e imprime a identidade portuguesa simples, mas refinada, que caracteriza a maior identidade da casa.

À mesa, ele me explica que tudo no restaurante tem de ter uma forte presença de Portugal. Caviar, foie gras e trufas, por exemplo, são iguarias deliciosas, mas não entram no menu. O motivo? “Não são portugueses”.

Baseado numa gastronomia sustentável e centrada em sabores sazonais, em que os ingredientes são tratados em seu estado mais puro, o restaurante usa grande parte da matéria-prima da própria propriedade.

Podemos então encontrar legumes, vegetais e cabritos de produção própria à mesa, assim como os vinhos e azeites, todos da Quinta de Lemos – a apresentação dos pratos inclusive, é feita em suportes de cerâmica feitos num ateliê próprio.

Da cozinha saem três tipos de menus degustação: o de oito tempos (135 €), o de seis tempos (105 €) e o para crianças (40 €), em que os dois primeiros podem ser harmonizados com vinhos por 50 € e 30 €, respectivamente. Em minha visita, pude fazer uma viagem por produtinhos da terra, peixes, frutos do mar e carne vermelha.

A começar, a cenoura foi usada em diversas formas: sanduíche de cenoura, sopa de cenoura roxa com laranja, gelado de cenoura assado e bolo lêvedo de cenoura. Bacalhau, mexilhão e cabrito ainda seguiram durante o jantar.

Vinhos e azeites

Azeites também são produzidos na quinta, que possui olival com sete hectares / Daniela Filomeno

Por falar em vinhos, a Quinta de Lemos cria as bebidas feitas a partir de castas autóctones da região. As vinhas, onde podemos andar ao lado delas pelos vinhedos, não são irrigadas, o que faz com que fiquem totalmente à mercê do clima do Dão, que dá o caráter peculiar anual de cada vinho.

Ao todo, a produção da quinta se resume em cerca de 100 mil garrafas por ano, e somos agraciados com vinhos tintos, brancos, rosé e espumantes.

Entre os tintos, monocastas e blends compõem o portfólio da marca – vale destacar que o Touriga Nacional é um dos mais celebrados daqui.

Azeites também são produzidos pela marca. Um olival de sete hectares com cerca de 2.500 oliveiras faz parte da propriedade, onde a apanha da azeitona é feita de maneira manual e o seu processamento se dá num período máximo de 24h, fato que preserva o frescor do fruto.

Na quinta, uma das minhas maiores recompensas foi passear entre as vinhas da propriedade e notar os encantos do Dão: os barulhos dos pássaros ao redor ditam uma calmaria sem igual. Junto do contraste entre o edifício moderno e dos vilarejos históricos ao redor, saí daqui apaixonada pelas possibilidades deste cantinho de Portugal.

Escapadinhas pelo Dão: queijos e pastel de feijão

Bem próxima de Viseu, a cerca de 25 km da cidade, fica outra descoberta no Dão e no centro de Portugal. Falo de Mangualde, pequeno município que carrega características também peculiares.

Aqui, o tempo parece ser outro! As casinhas charmosas no centrinho nos dão um gosto do que é viver no centro do país, onde, como de costume pela região, capelas e monumentos de tempos muito antigos e que fizeram parte da construção de Portugal convivem entre os moradores.

Acompanhada do chef Diogo Rocha, do Mesa de Lemos, sai de Viseu e segui em direção a Mangualde, onde algumas das mais deliciosas iguarias são produzidas e vendidas.

Falo de queijos e do tradicional pastel de feijão. A paradinha é obrigatória quando estiver de passagem por esse cantinho especial português .

Queijaria Vale da Estrela

Queijos Serra da Estrela da Queijaria Vale da Estrela, em Mangualde / Daniela Filomeno

A começar, visitei a fábrica da Vale da Estrela, que, para mim, carrega a alcunha de produzir os melhores queijos portugueses. A queijaria é responsável pelo Serra da Estrela, um dos queijos mais emblemáticos de Portugal – e um dos melhores da vida!

Tudo começa com a criação das ovelhas nos pastos da serra, que produzem o leite único usado na fabricação do queijo.

Produzido apenas com leite de ovelhas de raça Bordaleira da região demarcada da Serra da Estrela, cadeia montanhosa com as maiores altitudes de Portugal continental, elas são alimentadas com a pastagem da região.

Ao leite é adicionado a flor do cardo e sal para que coalhe – a coalhada é então dessorada e transformada em queijo. Tudo isso foi explicado pelos queijeiros da fábrica, onde pude ver com os próprios olhos a produção – são cerca de 180 queijos feitos por dia, em média.

As mais antigas menções a este queijo vem do século 12, tornando-o o mais antigo dos queijos portugueses.

É bem especial acompanhar a produção por mãos experientes de perto, e é possível ir até a sala de maturação e sentir os aromas dos diferentes tempos do queijos – brinco que a sala é na verdade a “sala dos tesouros”!

A visita na fábrica, que pode ser agendada no site, termina com uma degustação do que é produzido por aqui. É nesta hora que sentimos toda a cremosidade do Serra da Estrela: devemos comê-lo em fatias, aproveitando também a casca. Sua temperatura deve ser ambiente, quando notamos então a manteiga, a gordura e a untuosidade.

O bacana é que as diferenças entre os queijos se dão de acordo com o tempo, em que temos a oportunidade de experimentar um mesmo queijo em diferentes fases.

Pastelaria Patronato

Pastéis de feijão da Pastelaria Patronato, em Mangualde / Daniela Filomeno

A última paradinha ao lado do chef Diogo Rocha foi no Largo da Misericórdia, em Mangualde, em uma pastelaria supertradicional da região. Refiro-me à Pasteleria Patronato, que fica praticamente dentro de uma igreja.

A confeitaria recebeu todas as receitas das freiras e aqui temos de provar o pastel de feijão, um patrimônio do Dão.

De primeira, o visual pode confundir: o aspecto é quase como um pastel de nata, também um ícone português. Mas só temos uma forma de tirar a dúvida: comendo!

O recheio é mais denso, não é tão cremoso quanto o da outra iguaria, e, para meu paladar, lembra uma queijadinha, mas sem o queijo. É um sabor que pode ser descrito como intenso.

Essa experiência só o centro de Portugal tem! Além disso, sair da pastelaria e vislumbrar a cidade de Mangualde, bucólica e que parece até um vilarejo, é uma descoberta e tanto.