Veneza segura a maré pela primeira vez em 1.200 anos

Décadas de atrasos, polêmica e corrupção, a cidade finalmente testou suas tão esperadas barreiras de enchentes contra a maré

Julia Buckey, da CNN

Barreiras contra inundação em Veneza
Barreiras contra inundação em Veneza
Foto: Flavio Lo Scalzo/Reuters (10.jul.2020)

Sebastian Fagarazzi está acostumado a transportar seus pertences. Como um veneziano que mora no andar térreo, toda vez que a cidade enfrenta a acqua alta – as enchentes regulares causadas pela maré alta – ele ergue do chão móveis e eletrodomésticos, ou corre o risco de perder tudo.

No entanto, em 3 de outubro, com uma previsão de maré alta de 135 centímetros (que normalmente colocaria metade da cidade sob vários níveis de água), quando as sirenes de inundação soaram, ele não fez nada. “Eu tive fé”, contou.

Sábado foi a primeira acqua alta da temporada para Veneza. Foi também o dia em que, após décadas de atrasos, polêmica e corrupção, a cidade finalmente testou suas tão esperadas barreiras de enchentes contra a maré.

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Um teste feito em julho, supervisionado pelo primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, havia corrido bem – mas foi com bom tempo, na maré baixa. Os testes anteriores não conseguiram levantar todos os 78 portões nas barreiras que foram instaladas na lagoa veneziana.

Contra todas as probabilidades, funcionou.

Às 12h05, na maré alta, a Praça de São Marcos (que começa a inundar com apenas 90 centímetros de subida da maré e deveria já estar com água na altura dos joelhos dos pedestres) estava praticamente seca, com poças brotando apenas ao redor dos ralos.

Os cafés e lojas da praça, que muitas vezes fecham por horas a fio, permaneceram abertos.

No distrito de Cannaregio, ao norte, a casa de Sebastian Fagarazzi permaneceu seca.

“Eu ouvi as sirenes de advertência pela manhã, mas não suspendi nenhum dos meus móveis desta vez, porque a barreira foi levantada no último teste e eu tinha fé de que funcionaria”, lembrou Fagarazzi, cofundador da iniciativa social Venezia Autentica. “Isso é histórico”.

O sistema de defesa é chamado de Mose, o italiano para Moisés, um nome derivado de Módulo Sperimentale Elettromeccanico (Módulo Experimental Eletromecânico). Consiste em 78 barreiras contra enchentes instaladas no fundo do mar nos três principais pontos de entrada da lagoa.

Quando a maré alta chega, elas podem subir para formar uma barragem, impedindo o Mar Adriático de entrar na lagoa e inundar a cidade.

Atrasos e corrupção

O acque alte (“mar alto”) de Veneza normalmente ocorre entre outubro e março e dura algumas horas, afetando predominantemente as duas áreas mais baixas (e mais visitadas) da cidade: a Praça de São Marcos e a área ao redor do Rialto. O fenômeno geralmente é causado por uma combinação de marés altíssimas, baixa pressão atmosférica e a presença de um vento sul chamado sirocco.

Nos últimos anos, a frequência e severidade dos alagamentos vinham aumentando devido às mudanças climáticas. Em 12 de novembro de 2019, a cidade foi arrasada por uma acqua alta que atingiu 187 centímetros, com quase 90% da cidade inundada. As empresas têm lutado para se recuperar desde então, com uma queda acentuada no número de turistas, além dos custos para reparação de danos. A destruição, seguida pela pandemia, deixou os moradores em desespero.

O projeto Mose está em obras desde 1984, mas foi tão assolado por atrasos e corrupção que muitos venezianos nunca acreditaram que funcionaria.

“Não parece verdade”, comemorou Serena Nalon, da loja Bottega del Mondo, em Cannaregio. Seu negócio (uma cooperativa de comércio justo) sofreu grandes danos nas enchentes do ano passado.

“Eu estava muito cética, porque eles gastaram muito dinheiro, sem nenhum resultado até agora. Eu tinha expectativas mínimas”, disse. “Fiquei preocupada quando vi as previsões da maré, mas depois fiquei entre incrédula e feliz quando funcionou. Você aprecia mais as coisas quando não espera por elas”.

Perto dali, Federica Michielan, dona do bar Ae Bricoe, sentiu o mesmo. “É ótimo, finalmente foi resolvido! Espero que não quebre, porque aí ficaríamos debaixo d’água.”

‘Dia histórico’

Praça São Marcos, em Veneza, inundada por enchente
Praça São Marcos, em Veneza, inundada por enchente
Foto: Reuters (24.nov.2019)

Um teste em más condições climáticas foi o próximo passo para o Mose, que ainda não foi concluído. Na sexta-feira de lua cheia, quando a previsão era de ventos fortes para a manhã seguinte, a prefeitura pediu permissão para levantar as barreiras.

As sirenes de inundação de costume tocaram em toda a cidade por volta das 8h da manhã de sábado e o teste começou meia hora depois. Por volta das 10h10, as barreiras estavam totalmente levantadas. Quando o nível da água subiu para 132 centímetros fora do Mose, ele permaneceu em 70 centímetros dentro da lagoa – o suficiente para manter a Praça São Marcos seca.

“Este foi um dia histórico para Veneza”, disse mais tarde aos jornalistas o prefeito Luigi Brugnaro, que assistiu ao levantamento das barreiras com a comissária especial do Mose, Elisabetta Spitz.

“É uma grande satisfação depois de passar décadas observando de forma impotente a água chegar em todos os lugares da cidade, causando grandes danos. Mostramos que funciona não só com uma maré que inundaria a cidade, mas também com um vento sirocco de 19 nós”, afirmou o prefeito.

Na cidade, os venezianos (muitos dos quais haviam erguido barricadas em suas casas contra a entrada de água) mal podiam acreditar em sua sorte. Na padaria El Fornareto, em Cannaregio, os moradores sorriam na fila para comprar pão usando tênis, em vez das galochas que estariam calçando. Na igreja de San Nicolò dei Mendicoli, na zona sul de Dorsoduro (que normalmente inunda a 130 centímetros), o padre Paolo Bellio chegou a citar o sucesso da barragem em seu sermão noturno.

“Hoje fomos salvos. Não tivemos de usar as bombas. Foi uma surpresa, mas estou feliz que funcionou – especialmente porque foi tão criticado. Este é um dia de alegria para todos”.

Chamando isso de um “sucesso claro”, a diretora Spitz sublinhou no sábado se tratar “apenas de um passo fundamental para proteger a cidade e a lagoa”. A obra – que também envolve a elevação para 110 centímetros de pavimentação nas áreas mais baixas da cidade e muros de defesa permanentes próximos às barreiras contra enchentes – deve ser concluída em dezembro de 2021, quando será entregue à prefeitura.

Até lá, a barreira será elevada cada vez que a maré atingir 130 centímetros, o que significa que enchentes devastadoras como a do ano passado deverão ser evitadas. Porém, assim que a cidade assumir, no final de 2021, as barreiras serão erguidas mais cedo, quando a água atingir 110 centímetros.

‘Gosto amargo’

Isso significa, no entanto, que a acqua alta na Praça de São Marcos (que inunda a 90 centímetros) vai continuar. E de fato, no domingo, apenas 24 horas após o triunfo do Mose, a icônica piazza da cidade estava com água até a panturrilha, com um nível do mar de 106 centímetros.

Enquanto os turistas tiravam selfies e dançavam na água, um ar de resignação pairava sobre as lojas e cafés, que mais uma vez tiveram de fechar as portas.

No Quadri, um dos cafés mais famosos da praça, frequentado por celebridades, o gerente Roberto Pepe estava iniciando a operação de limpeza.

Embora a maré alta tenha sido às 12h25, ele manteve o café fechado durante toda a manhã, para empilhar cadeiras de veludo em mesas elevadas e bloquear as entradas. Não que isso ajudasse: mesmo uma hora depois da maré alta, ainda dava para ver um guardanapo ou outro boiando sobre o chão de mosaico verde.

“Como veneziano, estou feliz com ontem, mas como alguém que trabalha na Piazza San Marco, isso não muda nada e deixa um gosto amargo”, diz ele. “Nós temos a solução. Ontem a praça estava seca. Este é o dia seguinte ao teste, e olhe para ele. Nós só queremos trabalhar e este é o coração da cidade, que oferece muito trabalho para muita gente.”

“Sempre abordamos a acqua alta com resignação, mas agora é com decepção, porque sabemos que há uma solução. Esperamos 30 anos para fazer funcionar”.

O prefeito Brugnaro disse à CNN que o sucesso do Mose foi um “retorno”, não apenas para Veneza, mas também para a Itália, após o grande sofrimento do país durante a pandemia. “Ao ter a sensação de uma cidade mais fácil, mais normal, mesmo com um pouco de acqua alta – porque alguns centímetros não são nada comparados à devastação – acho que poderia mostrar ao mundo que temos tecnologia aqui. Isso vai ajudar a equilibrar o turismo”.

Fagarazzi, por sua vez, está apenas aliviado por enquanto. “O ano passado foi traumático, as sirenes não paravam. Acho que ainda não compreendemos o quanto essa notícia é incrível. Este é um novo dia para Veneza porque é a primeira vez em 1.200 anos (desde que a sede do poder local foi transferida para a Praça de São Marcos) que a maré alta não inunda a cidade.”

“Para os venezianos, parece o primeiro passo de Armstrong na lua”, comparou.

(Texto traduzido, leia o original em inglês)