‘Buen Camino’: histórias dos Caminhos de Santiago

Brasileiros que completaram os Caminhos de Santiago de Compostela dividem experiências e dão dicas a futuros peregrinos

Quando a pandemia acabar, as fronteiras abrirem e viajar pelo mundo voltar a ser algo normal e seguro, a tendência para o setor de turismo será um aumento nas viagens para destinos com muita natureza e, também, para viagens com propósito de autoconhecimento. E se tem um destino que oferece os dois e ainda muita história, ótima gastronomia e boa hospedagem é o percurso para Santiago de Compostela.

“Buen Camino”. Em português, “Bom caminho”. Essa é a saudação conhecida dos peregrinos que se aventuram pelas centenas de quilômetros que os levam até Santiago de Compostela, na Espanha.

Sim! Estamos falando de caminhos, no plural. Apesar de o mais falado e tradicional ser o Francês, que parte da cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port e tem aproximadamente 800 km, não existe apenas um caminho ou um jeito de chegar ao destino final. Há diversos pontos de partida, na França, em Portugal e na própria Espanha. Em todos, basta você seguir as famosas – e muito bem sinalizadas – setas amarelas até a Catedral de Santiago. Mas a verdade é uma só: cada caminho é muito particular, e o seu começa no momento em que você sai da sua casa.

São vários os caminhos que levam o peregrino a Santiago de Compostela (Foto: Arquivo pessoal)

Um dos grandes símbolos da peregrinação até Santiago é a Vieira, a concha vista por todos os cantos, de todas as formas. Há diversas lendas em volta do porquê ela ter todo esse simbolismo. Um deles resume a diversidade de opções: as suas linhas representam os diferentes caminhos que pessoas do mundo todo podem fazer para chegar ao mesmo lugar.

Na prática, é necessário andar no mínimo 100 km (ou 200 pedalando) para conseguir o certificado que comprova que você fez a peregrinação. A “Credencial do Peregrino”, que nada mais é do que um caderninho que vai sendo carimbado a cada estabelecimento ou albergue em que você se hospeda durante o trajeto, é a sua prova. Mas essa prova é apenas material. As experiências vividas durante os 100, 200 ou 800 km, a pé, de bicicleta ou a cavalo são o que você vai levar para o resto da vida.

As famosas setas amarelas são vistas por todo o caminho e levam até o destino final: a Catedral de Santiago de Compostela (Foto: arquivo pessoal)

Os motivos também são diversos. Muitos vão apenas para agradecer, outros, para pedir. Há quem descubra o seu propósito apenas durante a caminhada, mas a sensação de que passou por momentos enriquecedores e transformadores é comum a todos que fazem a peregrinação.

Mas o que tem de tão especial esta vivência que já fez milhões de pessoas saírem de suas casas?

A peregrinação até Santiago de Compostela é antiga, começou na Idade Média. Seu grande simbolismo vem após o Eremita Pelayo ter visto um show de luzes e estrelas em um bosque na região em que hoje fica a Galícia. Após o relato, foi falado que lá seria o suposto local em que estava sepultado Santiago Maior, um dos 12 apóstolos de Jesus. Ele foi responsável pela evangelização naquela região. Voltou a Jerusalém, foi preso e condenado à morte por decapitação.

A descoberta do túmulo foi levada ao Rei Alfonso II de Astúrias, que prontamente saiu de seu reino e foi pessoalmente conferir o “mistério”. Acreditou que se tratava, de fato, do local em que o apóstolo fora enterrado e mandou construir uma capela (onde hoje fica a conhecida Catedral, ponto de chegada do caminho). O rei, então, deu o pontapé para as viagens até o local, tornando-se o primeiro peregrino “oficial”.

Ele abriu os caminhos para que milhões de pessoas de todo o mundo pudessem conferir de perto a história. Mais do que isso, acabou abrindo as portas para que pessoas pudessem fazer suas próprias histórias até chegarem lá. E quantas histórias…

Luxo, tradição e conforto no caminho

Está enganado quem pensa que o Caminho de Santiago é destinado apenas aqueles adeptos a aventuras. Se você é daqueles que sonham em completá-lo, mas não abre mão de luxo e conforto durante suas férias, saiba que esse tipo de viagem também é feito para você. Hotéis e restaurantes luxuosos estão espalhados entre as cidades que cruzam o trajeto e são paradas obrigatórias para aqueles que não dispensam essas características.

“O caminho atende a todos os públicos. Há aqueles que guardam dinheiro por dez anos e outros que resolvem ir do dia para noite, conhecendo os lugares mais luxuosos que existem. Muitas cidades têm um conforto acima do esperado e outras são pequenos povoados. Há opção de albergues, casas rurais com quartos individuais, pousadas, mas também existem os hotéis estrelados, principalmente em cidades maiores. Existe o chamado menu peregrino, encontrado em muitos restaurantes, que você paga por uma refeição completa 10 euros, mas também há restaurantes em que você vai pagar por um menu-degustação 80 euros. Tem para todos os gostos e bolsos”, ressalta Jorge Cácares, presidente da Associação de Peregrinos do Caminho de Santiago (Acacs-SP).

Os hotéis da rede ‘Paradores’, pertencente ao governo espanhol, fazem parte da lista indispensável para quem busca conforto. Foram cedidos à iniciativa privada – por um tempo determinado –  locais considerados patrimônios históricos que estavam abandonados, como castelos, mosteiros, hospitais e conventos. Em diferentes cidades estão construídos mais de 90 espaços, alguns deles estrelados, para receber os peregrinos, que ganham um serviço diferenciado cercado de muita história. A lista completa pode ser conferida no site oficial da rede. 

A rede Paradores possui unidades por toda a Espanha. Muitas delas em locais históricos (Foto: site oficial)

Um destes é o ‘Parador Santo Domingo de La Calzada’, localizado em Santo Domingo de La Calzada, cidade às margens do rio Oja, no caminho francês, cerca de 560km de Santiago. Quatro estrelas, ele ocupa um antigo hospital do século 12, em frente à Catedral. Com salas majestosas e quartos amplos e confortáveis, ele tem um estilo rústico extremamente elegante, com parede em pedras, arcos góticos e móveis em madeira. A diária parte em torno de 100 euros, dependendo da época.

Parador de Santiago é considerado o hotel mais antigo do mundo (Foto: site oficial)

Para comemoração da sua chegada em grande estilo, a dica é a hospedagem no Parador Santiago de Compostela, conhecido como Hotel dos Reis Católicos. Segundo a rede, ele é considerado o hotel mais antigo do mundo. Começou a ser construído em 1499 como um hospital para receber peregrinos e os hospeda até hoje. Virou oficialmente um hotel em 1958, trazendo uma mistura de história, arte e tradição em sua estrutura. Localizado na famosa Praça do Obradoiro, com vista para a Catedral de Santiago, ponto de chegada dos caminhantes, o espaço possui mais de 130 quartos, com decoração luxuosa e paredes em pedra. Oferece uma sala de jantar lindíssima. As diárias partem em média de 150 euros, dependendo da época.

Quando o assunto é gastronomia as opções também não ficam para trás. Os peregrinos se dividem entre os que preferem degustar a culinária local dos pequenos vilarejos e os que buscam renomados restaurantes nas cidades maiores. Para os que ficam com a segunda opção, algumas sugestões em cidades que cruzam o caminho podem ser encontradas no guia Michelin: Pamplona, Léon, Burgos e Santiago de Compostela são algumas delas que possuem grande variedade para escolha.

Em Burgos, a 480km de Santiago, o restaurante La Favorita está situado em um dos espaços de maior valor ambiental do centro histórico da cidade. Charmoso e sofisticado, oferece um menu diversificado, com inúmeras opções de “Pinchos” – pequenos sanduíches e entradinhas -, diferentes pratos com carnes e peixes, entre outras que podem ser conferidas no site.

Em Santiago, o restaurante ‘Casa Marcelo’ é o queridinho dos peregrinos que buscam alta gastronomia. A cozinha aberta e mesa compartilhada garantem uma experiência diferente. O menu é composto por uma fusão das culinárias galega, japonesa e peruana, fugindo do que é oferecido pela região. Por conta da pandemia, o local está temporariamente fechado, com previsão de reabertura para março.

Mas se você não dispensa uma boa comida brasileira, em Molinaseca, faltando 200km para Santiago, um casal

Casal de brasileiros é dono de uma casa rural aconchegante a 200km de Santiago de Compostela (Foto: reprodução Facebook)

brasileiro montou uma casa rural, com seis suítes, chamada ‘Casa San Nicolas’. Localizada em uma vila maravilhosa, eles têm feito muito sucesso por lá com sua hospedagem aconchegante, exclusiva – a um preço razoável – e seus quitutes caseiros. Ela está no meio termo entre os hotéis de luxo e os albergues pelo caminho, uma ótima opção.

Decidi: quero fazer o caminho! O que preciso fazer?

A primeira dica é procurar a Associação de Peregrinos do Caminho de Santiago (Acacs-SP). Localizada no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, ela está preparada para te dar os melhores conselhos para sua caminhada. Eles possuem palestras preparatórias e contam com uma equipe que sabe tudo sobre os diferentes trajetos. As melhores e opções e dicas para os seus objetivos pessoais serão certamente encontradas lá, desde locais de hospedagem e alimentação, até sugestões de planejamento dos seus dias disponíveis.

Dicas gerais, de peregrino para peregrino:

  • Se programe com antecedência. Veja os dias que têm disponível em suas férias e programe com calma o caminho que deseja fazer e a forma como fazê-lo. Há diversas opções de acordo com o período e quilometragem que pretende percorrer. A tranquilidade é essencial para uma boa viagem
  • As bolhas são as maiores inimigas dos peregrinos. Invista nas meias e leve um kit para curativos, incluindo vaselina.
  • Não vá com muito peso, leve o básico. O recomendado é uma bagagem com cerca de 10% do seu peso corporal total.
  • Não use sapatos novos, dê preferência a algum com que você esteja acostumado a caminhar.
  • Faça caminhadas preparatórias, elas te ajudarão a ter resistência física.
  • Leve alfinetes. Caso sua roupa não seque a tempo, você consegue prender na sua mochila e secar durante o trajeto.
  • Não esqueça o filtro solar e um boné. Proteja muito bem o seu pescoço.
  • Aproveite o menu do peregrino oferecido pelos restaurantes das cidades pelas quais você passa. É um ótimo custo- benefício, além de poder conhecer a culinária local.
  • Não se preocupe, há toda uma estrutura preparada para receber os peregrinos, com farmácias, lojas e atendimento médico.
  • Caso tenha levado bagagem a mais, há um serviço disponível que entrega sua bagagem na sua próxima parada. Então, não se desespere.

Inspiração para fazer seu próprio caminho

Brasileiros que completaram o caminho nos contaram algumas histórias. Compartilham sentimentos como autodescobrimento, reflexão, introspecção e gratidão. E são unânimes ao responderem com um “sim” à pergunta: fariam esses caminhos de novo?

De avô para a família

O advogado Américo Espallargas fez a peregrinação em 2014 após ouvir histórias marcantes durante toda sua vida de quem já havia completado o caminho em anos anteriores: seu avô e sua madrinha. Sua experiência também foi emocionante. Na viagem comemorativa dos 80 anos daquele que havia despertado nele essa vontade, Américo descobriu a sua própria mística ao caminhar 400 km até a cidade.

Ronaldo Ribeiro, avô de Américo, completou o caminho em 1997 e inspirou toda a família (Foto: Arquivo pessoal)

“Meu avô fez o caminho francês inteiro em 1997 e sempre me contou boas histórias, foi uma experiência marcante em sua vida. Em 2014, ele completou 80 anos e, como presente de aniversário, quis fazer uma viagem para visitar seu melhor amigo, que morou muitos anos no Brasil, era espanhol e havia retornado ao seu país. Mais especificamente para onde nasceu, Cacabelos, coincidentemente (ou não) uma cidade que fica no caminho de Santiago de Compostela.

Eu estava passando por um momento pessoal difícil, queria pensar na vida e decidi que era hora de fazer a peregrinação de que tanto já tinha ouvido falar. Tinha poucos dias de férias. Então, me organizei para completar 400 km, parando para encontrá-lo nessa cidade, no meio da viagem. Grande parte da minha família acabou se animando, decidiu também ir à Espanha comemorar o seu aniversário e, de quebra, também combinou completar o tão emblemático caminho – com uma distância um pouco mais curta, partindo justamente de Cacabelos (cerca de 180 km do ponto de chegada).

Entre as histórias que ouvi sobre o caminho, uma me acompanhou durante anos da minha vida em meu pensamento. Minha madrinha passou por uma situação intrigante, que desperta boas lembranças até hoje.

É comum você encontrar, desencontrar e reencontrar pessoas durante sua caminhada até Santiago. Com ela não foi diferente. Em pelo menos cinco ocasiões, encontrou um casal que ficava olhando fixamente pra ela em todas as paradas, mas nunca trocava uma palavra. O olhar era insistente, até incômodo.

Em uma das vezes, minha madrinha estava chorando e eles prontamente a acolheram, foram simpáticos e brincaram com a situação de sempre se encontrarem, falando que certamente se encontrariam mais uma vez, agora em uma igreja, numa gruta em uma cidade perto dali. Dito e feito! No dia seguinte eles se encontraram novamente nesse local e lá foi revelado o “mistério”. Eles contaram que haviam perdido uma filha recentemente e decidiram fazer o Caminho de Santiago após indicação de um padre, que falou que achariam ali uma resposta de que ela estaria bem. Neste momento, eles tiraram uma foto da filha da carteira e minha madrinha jura até hoje que era ela. A semelhança era impressionante. Depois deste dia, ela nunca mais viu o casal.

Essa história e tantas outras me faziam pensar: qual será a MINHA mística do caminho? O que será que vai acontecer comigo?

Américo andou 400km por um dos caminhos que levam a Santiago (Foto: Arquivo pessoal)

Passei 23 dias caminhando, conhecendo diferentes histórias e propósitos de pessoas que estavam lá. Me impressionei com um coreano que fez o caminho todo descalço. Com uma mãe e filha canadenses que estavam lá para superar uma perda. E a pergunta ainda vinha na minha cabeça: qual será o meu recado? Qual será a minha experiência para contar?

Já era o último dia da viagem e havia combinado com a minha família que nos encontraríamos na chegada de Santiago. Saí da cidade em que estava em direção ao destino final, mas após caminhar 1 km percebi que havia esquecido o meu passaporte no hotel. Nisso, acabei desencontrando e atrasando o que havia sido programado. Estava sem celular, não tinha como avisá-los, mas resolvi andar sozinho e depois que chegasse à cidade daria um jeito de achá-los. A chegada a Santiago é linda, um morro do qual você vê a cidade inteira. Caminhei, então, até a tão aguardada Catedral. Ao entrar, olhei para a esquerda e a primeira pessoa que vi sentada em um banco foi o meu avô. Logo em seguida, um abraço da minha irmã me surpreendeu. Minha resposta foi essa: encontrei a minha família dentro da catedral sem planejar, do desencontro saiu o encontro, melhor do que se tivesse sido combinado. Tudo fez sentido, ficamos muito emocionados. Abracei meu avô, e a comemoração de seus 80 anos não poderia deixar de ser inesquecível”.

Américo em frente ao ponto de chegada dos peregrinos: a Catedral de Santiago (Foto: Arquivo pessoal)

Chamada para o caminho

A advogada Mariana Mendonça completou o caminho em 2019, em dez dias. Foi para a jornada sozinha e passou por um processo de autodescobrimento. Conheceu gente nova, caminhou só, observou tudo o que podia observar e chegou à conclusão que precisava passar por essa experiência para olhar para dentro.

“Percorrer o Caminho de Santiago de Compostela estava na lista de viagens que eu pretendia fazer algum dia, mas não era prioridade, pretendia visitar muitos outros destinos antes.

No entanto, no início de 2019, passei por uma mudança muito grande na vida, tive que reaprender a viver sozinha, foram tempos bastante difíceis para mim. Foi então que pensei que era a hora certa de fazer essa viagem.

Tomada a decisão, ainda em janeiro, pesquisei um pouco sobre o assunto, optei por seguir pelo caminho francês e descobri que não tinha muito tempo para planejar e organizar tudo. Eu queria fazer o Caminho ainda em 2019, a melhor época para isso é a primavera (entre março e junho), era adequado ter algum preparo físico e eu era praticamente sedentária. Mesmo assim resolvi que iria.

Por conta da falta de preparo físico e também porque queria passar alguns dias das férias em outros lugares, me propus a fazer o Caminho de Santiago por 10 dias.

É totalmente possível organizar toda a viagem por conta própria, mas como era minha primeira viagem sozinha e, também, pelo momento que estava vivendo, resolvi contratar uma assessoria para me ajudar a planejar o percurso, reservar hospedagem em cada parada e contratar um serviço de despacho de malas, que leva sua bagagem todos os dias de um hotel/hostel para o outro. E achei ótimo ir com tudo planejado, já que nessa época o Caminho recebe muitos peregrinos e pode se correr o risco de não encontrar hospedagem em alguns lugares.

Com tudo organizado, um preparo físico que adquiri com um mês de caminhadas na esteira do prédio, uma bota de trilha novinha muito pouco laceada e uma mala enorme de quem seguiria viagem depois de concluir o caminho, no início de junho eu desembarquei na Espanha para começar meu Caminho, em Ponferrada.

No primeiro dia acordei bem cedinho, fazia 6ºC por conta de uma frente fria que permaneceu na Espanha durante todo o meu trajeto e eu estava super ansiosa, mas muito feliz! Não tinha muita ideia sobre como iria ser, se eu me sentiria segura, se poderia me perder, quanto tempo eu demoraria pra chegar ao destino do dia, se daria conta de andar tantos quilômetros sem ter me preparado adequadamente.

Peguei minha mochila, que levava só o essencial para o dia, e saí do hotel procurando o início da rota. Logo notei que a rota para os peregrinos era muito bem sinalizada, não havia necessidade de mapas e também não tinha risco de me perder. Fiquei aliviada.

Já no início da minha caminhada encontrei outros peregrinos, que só me desejaram “buen camino” ou caminharam ao meu lado por um tempo pra bater um papo. Percebi que não estaria absolutamente sozinha o tempo todo. Mais um ponto de alívio.

E quando parei para checar se o incômodo que sentia no pé eram bolhas causadas pelas botas pouco acostumadas aos meus pés (e eram!), não demorou para que outro peregrino parasse e me perguntasse se eu precisava de ajuda ou se gostaria que ele me esperasse até retomar a caminhada. Entendi que não passaria por nenhum aperto sozinha. Ponto! Me senti segura.

Caminhei aquele dia fazendo poucas paradas, estava ansiosa demais pra chegar ao destino do dia, porque não sabia quanto demoraria pra chegar. E os últimos quilômetros de caminhada foram super cansativos. Lembro de chegar ao hotel exausta, estava toda empoeirada por ter andado em estradas de terra, mas não dei conta de ir direto para o banho! Tirei as botas e deitei no carpete do quarto, porque não queria sujar a cama branquinha e cheia de travesseiros muito fofos. Descansei ali por meia hora, sentindo todo o meu corpo doer e pensando “onde é que eu fui me meter?”, “como vou caminhar mais 9 dias?”. Mas depois de um banho num ótimo chuveiro e um bom trabalho do trio dorflex, cataflan aerossol e compeed (um curativo para bolhas que deve ser mágico), retomei a coragem e saí para brindar o meu primeiro dia como peregrina!

No dia seguinte acordei com menos dores no corpo. Fui ficando mais a vontade no Caminho. Entendi que não precisava acordar tão cedo, que não precisava impor rapidez à caminhada, que poderia fazer mais paradas, pelo menos a cada 2 horas, e que poderia, inclusive, incluir uma cervejinha nessas paradas (o que foi incrível, já que, pra mim, comer e beber são pontos altos de qualquer viagem).

Passei, então, a curtir cada minuto da experiência. Contemplei com calma todos os lugares incríveis que passei: vilarejos encantadores, campos, serras, florestas de eucaliptos super perfumadas, flores, estradas, pontes, igrejinhas, construções muito antigas. Ouvi com atenção os sons do caminho. Fiz pausas longas em lugares inspiradores. Caminhei sob a chuva algumas vezes, sem pressa. Prestei atenção aos movimentos e sensações do meu corpo.

Dos lugares que passei, se precisasse escolher apenas um para voltar, seria o Cebreiro. Um vilarejo muito antigo e pequeno, com as construções todas de pedras, localizado no alto da montanha. É como se fôssemos transportados para outra época. O lugar é mesmo especial, lindo, com um energia única. Em uma igrejinha do vilarejo, há sempre uma benção aos peregrinos, que é feita em diversas línguas, emocionante. No dia em que estive lá, eu era a única pessoa que falava português e, ainda assim, uma parte da celebração foi feita em nossa língua.

Mais tranquila e atenta a mim, ao meu humor, caminhei sozinha nos dias que me sentia mais introspectiva, ouvindo com gentileza os meus próprios pensamentos. Nos dias que me sentia mais expansiva, caminhei com a companhia de outros peregrinos, ouvindo com curiosidade e atenção a história de muita gente incrível e interessante que tive a sorte de cruzar ou de acompanhar pelo caminho por alguns dias. Contei a minha história também, muitas vezes. Esse processo de escutar o outro e ser ouvida me levou a reflexões importantes sobre o meu momento e sobre como eu gostaria de direcionar a minha vida.

Não só conheci muita gente bacana, como fiz bons amigos durante esses dias! Acho que expor nossas fragilidades e acessar as fragilidades do outro permite criar grandes laços em pouco tempo.

Também aproveitei ao máximo a culinária das regiões da Espanha que percorri. Em Castilla y León, as mais diversas tapas, e na Galícia, comida farta e muito polvo. Come-se muito bem no Caminho, com preços muito convidativos. No final do dia, normalmente, grupos de peregrinos se reúnem para jantar e essa é uma parte deliciosa da experiência. 

Chegar em Santiago de Compostela foi muito emocionante! Fiquei realmente orgulhosa por ter tido coragem de iniciar aquela jornada, sozinha, pela forma como vivi aqueles dias e por te concluído o caminho. Foi uma vitória pessoal.

Mas a melhor parte da experiência não está na chegada, mas sim no caminho. Num momento de fragilidade, ao percorrer o Caminho, me lembrei da minha força e capacidade, da importância de respeitar o meu tempo e os meus limites, me lembrei que o tempo todo a vida nos apresenta novas experiências incríveis se estivermos dispostos e, também, senti que a solitude, então novidade pra mim, era bem vinda e que eu saberia lidar muito bem com ela.

Foi realmente fantástico e bastante transformador fazer o Caminho de Santiago sozinha, num momento da minha vida em que senti como se fosse um “chamado” para viver essa experiência!

No primeiro dia da viagem, caminhar 10 dias parecia muito, demais pra mim. Mas ao chegar em Santiago, gostaria que aquela experiência durasse mais, não terminasse ali. Hoje, sinto que ainda não terminou. O Caminho de Santiago de Compostela é fisicamente simbólico, a caminhada é “pra dentro” e não termina enquanto buscarmos por transformações.

Recomendaria para qualquer pessoa que sinta que é o momento de fazer essa viagem viver essa experiência, independente do preparo físico (desde que não haja risco de saúde, claro!), de ter companhia ou do tempo disponível para fazer parte ou todo o caminho. É possível planejar um Caminho ideal para cada pessoa. Diria que essencial mesmo é apenas acostumar seus pés à bota antes da viagem, levar compeed e ir com o coração e a mente atentos para aproveitar cada passo dessa jornada!

Identidade alcançada 

Rodrigo Barbosa completou por duas vezes o caminho de Santiago. Da primeira, em 2017, embarcou com seu irmão gêmeo rumo à experiência, mas já tinham decidido que cada um faria seu próprio caminho. Saíram da França e fizeram o completo, de aproximadamente 800 km. Andaram juntos por algumas cidades, mas nada combinado. O propósito era exatamente esse: cada um ter o seu momento e “se encarar”.

Rodrigo e seu irmão gêmeo no primeiro dia de caminhada (Foto: Arquivo pessoal)

“Eu e meu irmão tínhamos voltado da Austrália após um período morando lá. Estávamos em um momento de transição e resolvemos fazer o caminho após nos inspirarmos em histórias de algumas pessoas. Sabíamos que era uma viagem em que você fica andando, quatro, cinco horas sozinho, pensando e refletindo. A ideia era essa. Passar por essa mudança e entender os nossos motivos e propósitos.

Não usamos celular. As vezes em que nos comunicávamos era por e-mail, pedindo emprestado o aparelho de outros peregrinos, o que também foi muito legal porque acabávamos conhecendo ainda mais pessoas. Caminhamos os primeiros dias juntos e depois seguimos cada um o seu, querendo conhecer pessoas e vivências diferentes.

Não é necessário um guia turístico, tudo é muito bem sinalizado. Hoje há também muitos aplicativos para a galera mais conectada. Eu sou mais analógico e comprei um guia de papel mesmo, com as informações essenciais, como lista de albergues para se hospedar. Isso, aliás, é um ponto muito importante. Você tem diversos tipos de hospedagem. Há os albergues municipais, outros pertencentes a associações e igrejas que pedem apenas doações em troca de estadia, e os privados. Geralmente nos particulares você consegue reservar com antecedência. O legal de você não fazer essa reserva prévia é não ter que obrigatoriamente parar em tal cidade. Você tem a liberdade de continuar andando ou descansar um pouco antes. São dias e dias de caminhada. Em alguns você estará mais disposto, em outros nem tanto.

Você vai andando, e ao mesmo tempo vai clareando vários fatores internamente, passa por lindas paisagens e conhece de perto a cultura e culinária espanhola. A dica que deixo para os futuros caminhantes é o “menu do peregrino”, oferecido pelos restaurantes de cidades pelo caminho. Você paga um preço justíssimo por uma refeição completa, com dois pratos, pão e vinho. Isso me “salvou” várias vezes. Carboidrato ajuda muito nessas horas. Há também a opção de cozinhar nos albergues. Você faz as compras nos mercadinhos e compartilha o momento com outros peregrinos. Foram momentos especiais pra mim. 

O mais importante do caminho é o caminhar. É um momento de introspecção, em que você vai tomando decisões importantes na sua vida. Você vê de tudo: gente de todas as nacionalidades, velhinhos aposentados, gente que perdeu o emprego, pessoas pagando promessas. São várias as motivações.

Vi um grupo de pais que ficaram amigos após suas filhas estudarem juntas. Elas cresceram e eles queriam um motivo para continuarem próximos. Decidiram, então, que completariam o caminho de Santiago aos poucos, fazendo todo ano uma parte. Quando os encontrei, eles já estavam na “viagem final”, depois de cinco anos. Já pensavam o que fariam no ano seguinte para continuarem tendo um momento só deles.

O caminho diz muito sobre muita coisa. Sobre amizade, sobre valores. Aprendi na pele que você precisa de poucas coisas nessa vida. Você vê pessoas se ajudando, vive em comunidade e pensa no outro, mesmo não o conhecendo. As coisas simplesmente fluem quando você escuta no café da manhã alguém desejando um “Buen Camiño”.

Hoje, ele faz parte da minha identidade. Vou querer fazer todos os caminhos que minha saúde me permitir. Quero sempre viver esses valores de perto e coloquei como objetivo repetir a experiência de dois em dois anos. Fiz em 2017, 2019 e se toda essa loucura de pandemia passar, em 2021 estarei lá mais uma vez: agradecendo e agregando cada vez mais experiências para ser quem hoje eu sou.”

Rodrigo Barbosa completou o caminho duas vezes e pretende voltar em 2021 (Foto: Arquivo pessoal)

O propósito descoberto

O fisioterapeuta Saulo Freitas passou por uma experiência diferente. Completou os cerca de 800 km do caminho de bicicleta, enquanto sua esposa caminhava. A viagem foi a realização de um sonho dela, mas acabou virando o dele também.

Saulo percorreu cerca de 800km de bicicleta da França até Santiago de Compostela (Foto: Arquivo pessoal)

“Eu decidi fazer o caminho porque minha esposa tinha muita vontade. Ela queria fazer a pé, mas eu não sou muito de caminhar. Gosto de correr, pedalar, mas caminhar não me atrai. Topei fazer de bicicleta, e meu conceito da viagem era puramente turismo, não tinha um objetivo religioso. Fui pelo fato de fazermos uma viagem juntos. Apesar de concluirmos de formas diferentes, nos encontraríamos no final e seria a realização de um sonho dela, o que me deixaria também realizado. Mas a verdade é que acabei descobrindo muitas coisas, inclusive o verdadeiro propósito de eu estar lá.

Sai de Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, e de cara já encarei uma subida monstruosa, mostrando que a jornada não seria tão fácil. A segunda parte do caminho é mais plana, é uma parte de autoconhecimento. Você precisa ter perseverança para se manter no ritmo porque acaba passando muito tempo sozinho. Dependendo da cidade, há rotas sugeridas para os ciclistas. Aconselho a segui-las para não ter que pegar trechos com escadarias.

Foram 15 dias pedalando. E uma coisa é certa: mesmo que você seja ateu, não acredite em nada, é impossível você fazer o caminho e não sentir uma energia diferente. Uma força maior que te acolhe, está junto com você durante todo o trajeto. É muito forte. As pessoas que fazem o caminho têm objetivos diferentes, mas de uma forma ou de outra entendem esse significado maior, que é comum a todos.

Uma viagem que seria apenas para tirar uns dias de férias começou a tomar outra forma logo no meu primeiro dia. Quando decidimos fazer o caminho, lembro que postei no Facebook contando a novidade para os meus amigos. Uma colega da época de faculdade logo me mandou uma mensagem. Ela me contou que seu irmão sofreu um acidente e faleceu fazendo o caminho. Após o ocorrido, ela foi até o local para fazer uma dedicatória e jogar as suas cinzas, criando uma espécie de memorial. Ela me pediu que eu tirasse uma foto para ela ver se estava tudo bem conservado.

Saulo encontrou a homenagem da amiga ao irmão, que faleceu fazendo o caminho (Foto: Arquivo Pessoal)

Logo que cheguei à cidade, achei a placa de mármore com a foto de seu irmão com um texto muito bonito. Realizei o pedido: tirei a foto. Um grupo de peregrinos parou e me perguntou se eu o conhecia. Já estava muito emocionado e contei a história. Eles, então, se reuniram e perguntaram: “Será que a gente poderia rezar por ele?”. Demos as mãos e começamos a rezar. Quando olhei todas aquelas pessoas desconhecidas reunidas, orando por ele, não me aguentei. Desabei de tanto chorar. Foi único, forte e naquele momento eu senti o meu propósito, o porquê estava fazendo o caminho. Todo aquele conceito de turismo já tinha ido por água abaixo.

Segui a viagem. Estava tudo combinado com a minha esposa, íamos conversando para chegarmos no mesmo dia. No fim do trajeto, já estava cansado. Conheci um italiano e um espanhol que me animaram e me falaram que ficariam comigo até eu encontrá-la. Marcamos como ponto de encontro o “Monte do Gozo”, que fica a cerca de 6 km de Santiago de Compostela. Após muitos dias sem nos vermos, nos reencontramos e foi maravilhoso, mas ainda faltava um pouquinho. Pedalei mais 30 min, ela andou mais 1 hora e a tão sonhada chegada à Catedral foi emocionante. Fiquei esperando por ela e registrei esse momento.

Tenho planos de repetir essa experiência. Você acaba sofrendo grandes transformações. Entende a importância de ajudar o próximo, ser solidário, uma pessoa melhor. Aprende a ser menos materialista e descobre uma versão melhor de si mesmo. Por mais que seu motivo para fazer aquele caminho seja grande, você vai aprender que sempre tem alguém com um motivo maior que o seu. Que você precisa ser gentil com as pessoas pois não sabe o que elas estão passando.

O sonho da minha esposa acabou me fazendo despertar para muitas coisas que levarei pra sempre comigo.”

Saulo e sua esposa completaram o caminho: ele de bicicleta, ela andando (Foto: Arquivo pessoal)
Saulo e sua esposa completaram o caminho: ele de bicicleta, ela andando (Foto: Arquivo pessoal)

No tempo certo: agradecer

Gustavo Lanhoso, de 57 anos, sempre trabalhou no mercado financeiro. O dia a dia agitado acabou postergando o sonho de completar o caminho francês de Santiago de Compostela, já que precisava de tempo e tranquilidade para cumprir tal objetivo. Ele, entretanto, veio na hora certa, após encerrar um ciclo de sua carreira.

Eu sempre tive vontade de fazer o caminho, mas queria completar o tradicional, saindo da França, o que demanda muito tempo. Trabalhava no mercado financeiro e nunca tive tanto tempo de férias para isso. Depois de 27 anos nessa vida agitada, resolvi sair do meu emprego. Precisava encerrar um ciclo da minha carreira e me preparei para isso. Não tinha ideia do que fazer no futuro. O que me permiti foi fazer coisas que enquanto estava trabalhando não conseguia. Pensei: “Agora é o momento” e fui atrás. Uma delas era essa viagem. Conversei com várias pessoas que tinham feito, assisti a palestras da Associação dos Amigos de Santiago, li muito sobre o assunto e embarquei, sem pensar tanto.

Gustavo completou o caminho francês e encontrou o propósito de sua viagem: agradecer sua vida (Foto: Arquivo pessoal)

Foram 33 dias caminhando sozinho. Comprei um guia, não reservei nenhum lugar. Ia parando nas cidades e procurando um local para ficar. Você tem diversas opções, de todos os preços. Em alguns dias, escolhi ficar em albergues para sentir o espírito do peregrino. Em outros, optei por ficar em pousadas com um pouco mais de conforto.

No primeiro dia você já conhece um monte de gente. Cada um tem um ritmo, então, você acaba realmente encontrando e desencontrando muita gente. Uma coisa muito legal que aconselho é despachar as malas. Há um serviço disponível que passa todas as manhãs nos albergues, pega as bagagens e as leva para o seu próximo destino. Assim, você não precisa carregar tanto peso durante o trajeto.

Os quilômetros são esclarecedores. Você passa por uma verdadeira imersão de valores. Você só precisa se preocupar com onde você vai dormir. O resto do seu tempo é dedicado a você, a suas reflexões. A sensação de absoluta liberdade e desconexão do mundo é maravilhosa. É o seu momento.

Ouvi muita gente falando sobre o tal propósito de fazer o caminho, e eu me perguntava: “Qual é o meu?”. Eu realmente não sabia. Estava em uma fase de transição, estava super bem, tinha uma namorada, meus filhos e pais estavam felizes, com saúde, situação confortável, o que me permitiu fazer tudo de forma muito tranquila. Passei da metade do caminho e vi uma cruz imensa, um monte de gente em volta deixando seus pedidos. Foi lá que caiu a minha ficha: estava lá para agradecer a minha vida, tudo o que consegui. Agradecer pela minha família, pela minha profissão e por tudo o que eu vivi. O caminho significou tudo o que passei para chegar até lá.

Então, a dica que dou para quem pensa em fazê-lo é: não se preocupe tanto. Não pense muito. Não conheço ninguém que foi e não gostou. Abrace a oportunidade, abra o seu coração e vá embora!”