Renascimento da culinária judaica expande definição de comida kosher

Restaurantes de culinária kosher nos Estados Unidos estão integrando uma variedade de cozinhas, como chinesa, francesa e italiana, para atrair outros públicos além dos judeus ortodoxos

Restaurante Serengeti, em Baltimore, nos Estados Unidos
Restaurante Serengeti, em Baltimore, nos Estados Unidos Reprodução/Instagram

Noah SheidlowerRadhika Maryada CNN

Leonardo Nourafchan queria fazer algo diferente. Depois de tentar trabalhar no mercado imobiliário, o californiano sabia que queria entrar na indústria de alimentos, começando por um serviço de bufê a partir de sua própria casa – com a ajuda da divulgação das mídias sociais.

Para isso, partiu para uma experiência na cozinha em diversos restaurantes de Nova York, incluindo Mike’s Bistro e Alenbi, para finalmente abrir a casa israelense Charcoal Grill & Bar, em Los Angeles.

Nourafchan introduziu pratos de influência mexicana – inspirados no cenário culinário da região – em seu menu kosher. Entre eles, tacos de shawarma de cordeiro, que ele disse serem hoje incrivelmente populares no cardápio. O restaurante fechou no início da pandemia, mas em maio de 2020, Nourafchan estava testando um novo conceito de comida, a kosher mexicali, na cozinha de seu antigo fornecedor de carnes.

Lenny’s Casita, um restaurante mexicano kosher, foi então aberto oficialmente em julho de 2021.

“É uma espécie de cruzamento entre Chipotle kosher e Taco Bell, que são as coisas que eu mais costumava comer quando era criança”, contou ele à CNN.

Nourafchan disse que seu menu é inspirado na comida de rua – que inclui tacos de carne assada com pico de gallo, asinhas com chipotle honey e pães pitas mediterrâneos chamados arayis – e faz parte de uma grande “revolução da comida kosher” que está acontecendo em todo o país.

Em cidades como Nova York, Chicago, Miami e Baltimore, os restaurantes estão redefinindo as comidas kosher e a judaica mais do que nunca, utilizando cozinhas tradicionalmente não kosher, como chinesa, japonesa, francesa e italiana.

 

Esses restaurantes kosher estão atraindo mais do que apenas judeus ortodoxos – os proprietários de restaurantes kosher com os quais a CNN conversou notaram que uma grande parte de sua clientela é composta por jovens não judeus que buscam experimentar pratos inovadores.

“Antes você tinha o gefilte e o cholent e sua delicatessen kosher, agora você tem acesso a uma grande variedade de pratos”, disse Nourafchan, que acrescenta que muitos chefs não-kosher estão adicionando um toque multicultural ao tipo de culinária.

“As pessoas estão dispostas a valorizar e apreciar a nova comida tradicional e autêntica de uma forma que não acho que os judeus kosher estivessem interessados no passado”, disse ele. “Tudo isso se combina para dar suporte a um mercado que permite que pessoas criativas como eu façam suas criações”.

O que define a comida kosher

A comida kosher se tornou significativamente mais acessível na última década, de acordo com Elan Kornblum, presidente da “Great Kosher Reataurants Magazine”, que dirige um grupo no Facebook sobre restaurantes kosher. Ele atribui isso às mídias sociais, que apresentam a culinária kosher como mais saudável, além da crescente criatividade dos chefs e ao aumento da acessibilidade aos ingredientes kosher.

Hoje, existe mais de um milhão de ingredientes e produtos certificados como kosher, segundo Roger Horowitz, autor do “Kosher USA”. Nos supermercados, 30% a 40% dos itens são certificados como kosher, disse Horowitz. Muitas organizações rabínicas ortodoxas incorporaram requisitos kosher na fabricação de alimentos, integrando a ciência moderna à lei judaica centenária.

As leis do kosher declaram que os laticínios não podem ser consumidos nas primeiras seis horas após a carne. Os animais terrestres devem ruminar e ter cascos fendidos, de acordo com a Torá, que proíbe carne de porco e de coelho. Os peixes devem ter barbatanas e escamas, incluindo atum, salmão e robalo.

Horowitz disse à CNN que, como muitos judeus chegaram aos Estados Unidos no início dos anos 1900, a integração das normas alimentares kosher tornou-se uma medida de sua aceitação na sociedade americana, onde os códigos da dieta judaica estavam em conflito com as tradições culinárias predominantemente cristãs.

A incorporação de requisitos kosher na fabricação de alimentos e nas cadeias de abastecimento possibilitou que muito ingredientes fossem certificados como kosher, especialmente aqueles não tradicionalmente associados à comida judaica.

De acordo com Horowitz, a certificação da carne kosher foi particularmente desafiadora. Embora carnes como a de porco estejam fora de questão, existem muitos requisitos para a forma como as aves devem ser abatidas, que diferem dos procedimentos de processamento seguidos pela produção em massa.

A carne é um “problema ainda maior”, porque a lei judaica proíbe o consumo do sangue depois que o animal foi morto, então apenas os quartos dianteiros são permitidos. O pequeno número de centros de fabricação de carne kosher contribui para preços muito mais altos da carne kosher do que a carne comum.

“De modo geral, o molho de espaguete certificado kosher, por exemplo, não há diferença de preço em relação ao molho de espaguete não-kosher”, disse Horowitz. “Em vez disso, na área das carnes, você está pagando uma multa, uma sobretaxa pelas exigências religiosas judaicas”.

Alguns produtos kosher, como o vinho Manischewitz, foram fundamentais para conquistar consumidores não judeus. Outros, como o Jell-O, tiveram jornadas longas para se tornarem kosher.

Horowitz observou que a glicerina, um ingrediente encontrado em tudo, desde refrigerantes a sorvetes, foi originalmente considerada não-kosher, porque era um subproduto da fabricação de sabão e um produto de gordura animal. Devido aos desenvolvimentos científicos, a glicerina do óleo vegetal ou do petróleo é kosher, e a Coca-Cola e outros produtos puderam ser certificados.

As opções de alimentos kosher se expandiram com os aumentos de custo relativamente marginais devido aos avanços na fabricação, que tornaram mais fácil detectar se os ingredientes são livres de contaminantes. O escopo do que é considerado “comida judaica” cresceu além da culinária Ashkenazi, da Europa Oridental, para “refletir a diversidade e a variedade dos judeus que provavelmente comem comida francesa ou italiana diariamente”, disse Horowitz.

Restaurante La Gondola, de Beverly Hills: um kosher italiano / Reprodução/Facebook

As dificuldades em operar um restaurante kosher

Muitos restaurantes kosher inovadores e culturalmente diversos foram abertos este ano nos EUA. Embora esses restaurantes exponham muitos pratos ou estilos de culinária anteriormente desconhecidos aos clientes, sua experimentação traz alguns riscos e custos, segundo alguns proprietários.

Bryan Gryka é o principal proprietário e chef executivo do Milt’s BBQ for the Perplexed, em Chicago, com muitos pratos inspirados em sua infância e adolescência, no Arkansas. O cardápio inclui opções como sanduíche de peito defumado por 16 horas, frango apimentado “Noshville” e frango defumado a lenha. Por causa dos altos custos da carne kosher, que dispararam durante a pandemia, os preços do menu também aumentaram.

Gryka recorreu às redes sociais para explicar exatamente como os preços se dividem para tornar os números mais transparentes. Ele também publicou sobre porque os restaurantes usam, por exemplo, batatas fritas congeladas, ou porque eles cobram pelo cancelamento.

Para restaurantes certificados como kosher, fechados frequentemente nas noites de sexta-feira e sábado para o Shabat – bem como em todos os feriados judaicos –, podem resultar em grandes perdas de receita. De acordo com Gryka, o Milt’s fecha cerca de 100 dias por ano, o que torna mais difícil competir com outros que ficam abertos o ano todo.

“Fazemos muitos serviços de catering e eventos e, em termos de economia, essas são grande parte do nosso sucesso, é a capacidade de fazer outras coisas fora das quatro paredes, porque em muitos lugares se você não tiver o serviço de catering, as maneiras de sobreviver e ser lucrativo de alguma forma ficam limitados”, disse Gryka.

O Soho Asian Bar and Grill, um restaurante contemporâneo de inspiração chinesa e japonesa em Aventura, na Flórida, perde cerca de 80 dias dias no ano. Mas, de acordo com o proprietário Shlomi Ezra, ter um menu tão grande no “balcão único” – com sushi, dim sum, pratos de macarrão e bifes – permite que o Soho atenda a um grande público kosher que não está familiarizado com os sabores asiáticos.

O compromisso do Soho em servir a todos na comunidade, incluindo aqueles afetados pelo colapso do condomínio Surfside, no verão passado, também ajudou, porque atrai uma grande público não-kosher.

“Não vejo nenhuma diferença entre um restaurante normal e um restaurante kosher”, disse Ezra à CNN. “O restaurante tem que ser bom, o serviço tem que ser bom, a comida tem que ser pontual para que as pessoas não se esqueçam de você”.

O que os restaurantes estão fazendo para “kosherificar” diferentes cozinhas

Josh Kessler trabalhou principalmente em restaurantes não-kosher na cidade de Nova York, depois de se formar no Culinary Institute of America. Mas ele decidiu tirar proveito de suas experiências na culinária francesa para abrir um bistrô kosher que “poderia se comparar a qualquer um dos outros restaurante não-kosher que trabalhei em minha carreira”.

No Barnea Bistro, Kessler prepara pratos como tártaro de carne, crudo Hamachi, riblets de cordeiro e peito de pato com risoto de cogumelos selvagens, além de pratos de inspiração italiana como ravioli de trufas negras e nhoque de costela.

Kessler usa caju como substituto do leite e usa técnicas de culinária vegana para pratos como polenta frita com mel trufado. Ele utiliza técnicas francesas em seu menu, porque percebeu que mais judeus kosher estão dispostos a sair de suas zonas de conforto e experimentar novos sabores.

“Seja em vídeo, seja em fotos, seja no Food Network ou no Cooking Channel, [judeus kosher] são expostos … ao que o resto do mundo está comendo, e acontece que as pessoas kosher querem uma oportunidade para ser progressivas dessa forma e obter pelo menos uma exposição da melhor maneira possível aos diferentes tipos de cozinhas do mundo”, disse Kessler.

Esse era um dos objetivos de Nir Weinblut, de ascendência turca e italiana, dono do restaurante kosher italiano La Gondola, em Beverly Hills. Como um dos primeiros restaurantes kosher italianos de Los Angeles – inaugurado em 1992 – ao longo dos anos, o La Gondola tirou proveito das cozinhas asiática, mediterrânea e californiana, criando pratos como bacon de carne cristalizada, penne al arrabiata, massa de jambalaya e salmão pastramizado.

“Nosso objetivo era tirar todo o queijo e não queríamos fazer nenhum substituto, porque não havia como no mundo, especialmente naquela época, ser capaz de fazer um fettuccine alfredo [com parmesão e manteiga] falso, se você tem produtos substitutos tão ruins”, disse Weinblut.

Ao estudar sua herança, Weinblut descobriu que a culinária italiana não usa tanto queijo quanto a maioria das pessoas pensa – “quando você pensa em italiano, pensa que tudo tem dois quilos de muçarela jogado na comida”. Em vez disso, ele confiou mais em vegetais e frutas enquanto criava os pratos.

Isso ainda necessitou de soluções criativas. Por exemplo, como a supervisão kosher não permite que chefs usem alcachofras inteiras devido ao número de insetos no coração da planta, o La Gondola improvisou, usando apenas as partes inferiores da alcachofra.

Weinblut disse à CNN que, como escolheu não apresentar o La Gondola como prioritariamente kosher, a clientela tem sido de cerca de 80% não-kosher. Ele vê o La Gondola como um dos líderes na “revolução kosher” em Los Angeles.

No restaurante Serengeti, em Baltimore, uma churrascaria kosher que mistura sabores como o Southern e o Africano, exibir as possibilidades da cozinha kosher não poderia ser mais importante, de acordo com a co-proprietária Lara Franks. Nascida e criada na África do Sul, Lara e seu marido Larry queriam capturar as complexidades da culinária sul-africana em um restaurante com contexto kosher.

Eles trouxeram receitas holandesas, malaias, portuguesas e indígenas para pratos como as samosas de vegetais Cabo Malay, frango Peri Peri inspirado em Moçambique, peito de frango e arroz biryani da Cidade do Cabo e bobotie sul-africano.

“Não existe a necessidade de, se você se mantiver kosher, sinta que de alguma forma está em desvantagem por não poder experimentar um prato particular ou tipos de cozinha”, diz Frank.

“Praticamente qualquer coisa pode ter uma tradução kosher”.

*Matéria traduzida. Leia a versão original em inglês, aqui