Lisiane Arouca, Kafe Bassi e Fabi Teixeira: as doceiras mais famosas de Salvador

Elas estão longe dos famosos tabuleiros da Bahia, mas essas três mulheres honram tradições culturais e têm transformado o cenário das doçuras soteropolitanas

A história de três mulheres que têm transformado o cenário das sobremesas de Salvador / Fotografia para o restaurante Origem
A história de três mulheres que têm transformado o cenário das sobremesas de Salvador / Fotografia para o restaurante Origem Leonardo Machado Freire

Fernanda Meneguetticolaboração para o Viagem & Gastronomia

Toda menina baiana tem um santo, tem encantos, tem um jeito que Deus dá. Gilberto Gil esqueceu de dizer que tem também a doçura que acompanha a tradição da cocada, dos bolinhos de estudante e de arroz, do mugunzá e do quindim de iaiá, aquele com bastante coco fresco ralado grosso.

Baianas de Salvador ou por opção, as doceiras Lisiane Arouca, 43, por trás das sobremesas do premiado Origem, assim como do Ori, do Omí e do minibar Gem; Fabiane Araújo Teixeira, 41, da Casa Ópera e da Trópico Chocolates; e Katrin Bassi, 34, dona das sobremesas, pães e sorvetes do Manga, desenvolvem trabalhos que perpetuam a herança cultural sem deixar de dar eloquência à própria voz.

De trás pra frente, Katrin, ou Kafe como é mais chamada, confessa: “Quando cheguei no Brasil achei tudo muito, muito doce e com essa consistência do leite condensado. Eu não gostei muito”. Nem é de estranhar, afinal, a chef de Ravensburg, no sul da Alemanha, cresceu vendo o pai produzir kirsch, destilado à base de cereja que inspirou sua paixão e diversas versões de floresta negra.

Em contrapartida, seu fascínio pelas frutas é evidente: “A coisa mais legal da Bahia – e do Brasil – são as frutas. Tem tanta variedade que ainda vou na feira e aparecem coisas que nunca provei!”. O entusiasmo fez com que, em 2019, o recém-inaugurado Manga só tivesse sobremesas frutadas.

Katrin Bassi, dona das sobremesas, pães e sorvetes do Manga / Leonardo Machado Freire

“Aos poucos, até para agradar, incluí caramelo, doce de leite, pipoca…”, conta ela que, por cocada, primeira iguaria apresentada por Dante (hoje seu marido, mas na altura colega de brigada no D.O.M.), sentisse um arrebatamento instantâneo.

“Transformação não é meu trabalho, porque é muito típico, é da cultura, mas meus doces, lógico, têm um sotaque alemão. Naturalmente gosto de combinar as frutas daqui com leite, creme de leite, iogurte e queijos com diferentes graus de gordura, de acidez”, constata Kafe.

Com essa base, produz sobremesas como a Jasmim Manga (tagliatelle e espuma de manga verde, sorvete de jasmim, crumble de erva cidreira e sorbet de manga), a Colmeia de Uruçu e a Cacau (mousse de cacau, ganache com café, nibs e mel de cacau), assim como os picolés mais aclamados da Bahia.

O caso de amor dos brasileiros com o caju retratado no picolé da chef Kafe. Com sorvete de castanha de caju e calda de doce da fruta / Leonardo Machado Freire

Falando neles, a colega Fabi é fã: “Ai, o de caju é incrível, o de amendoim, caramelo e chocolate ao leite nem se fala…”. Claro, quando a coisa dá uma achocolatada, fala especialmente ao coração da empresária e chocolate maker.

“Tive uma desilusão com o mercado de trabalho e como gostava muito de gastronomia e de vinho e minhas viagens eram sempre em cima disso, decidi ir para São Paulo fazer um curso de confeitaria com o Diego Lozano e saí completamente chocólatra”, revela.

Foi assim que surgiu a Casa Ópera, em 2015.

Fabiane Araújo Teixeira à frente da Casa Ópera/ Arleandes Torres

“Embora sejamos filhos do cacau e estejamos próximos da região de Ilhéus, Salvador é quente e úmida, tem muito produto de baixa qualidade e as pessoas ainda não sabem diferenciar. É muito desafiador fazer chocolate aqui”, explica – e não se lamenta – a especialista no assunto.

Para sua chocolateria bean to bar, Fabiane garimpou fornecedores de cacau. Dentre eles, Edu Cacau (ou Eduardo Melo), Lucas Arléo e João Tavares, que enviam amêndoas para poucos e bons, como o über chef Alain Ducasse.

“Fabricamos nosso próprio chocolate da amêndoa à barra. Nossos rótulos vão de 36% a 70% cacau, são saudáveis e sustentáveis. Das sementes aos nibs torrados, passando pelo moinho de pedra, cada barrinha leva pelo menos 72 horas pra ficar pronta.”

A trabalheira tem compensado: os bombons de pipoca e o sorvete com o próprio chocolate viraram objeto de desejo na capital baiana. Tanto é que, antes do final do ano, sua fábrica urbana se converterá em um ateliê de portas abertas, onde além de observar o processo, o consumidor poderá comprar as chocolatices.

“Hoje são quatro rótulos, mas a ideia é ter uma linha mais criativa. Quem sabe com inspirações nas minhas sobremesas preferidas, como mousse de chocolate e ambrosia”.

Lisiane Arouca é o nome por trás das sobremesas do premiado Origem, do Ori, do Omí e do mini bar Gem / Leonardo Freire

Ops, essa também é a predileta de outra colega, Lisiane. “Minha mãe não fazia nada gostoso e como todo mundo era gordinho em casa e ela tinha diabetes, evitava fazer doce. Por sorte, quando eu tinha 8 anos, minha avó Marieta veio morar com a gente e introduziu alimentos mais afetivos, como a ambrosia”, emociona-se.

“Para vovó era ‘doce de leite’, tinha menos ovos do que a tradicional, então tinha mesmo esse gosto de leite caramelizado”, garante. Com apenas três ingredientes (leite, açúcar e apenas gema “para não gastar o ovo todo”), foi a primeira doçura que a menina aprendeu, é a única que prepara para toda e qualquer festa de família e a que hoje é homenageada pela Dona Marieta, sobremesa mais pedida do Omí.

Dona Marieta, sobremesa mais pedida do Omí / Divulgação

Assumidamente “louca por açúcar desde sempre”, Lisi recorreu ao insumo há pouco mais de uma década. “Meu primeiro marido era jogador de futebol, mas se machucou e teve de parar de jogar. Ficamos os dois desempregados, sem renda nenhuma, com duas meninas pequenas. Como sempre fiz muito bolo com as receitinhas de minhas tias de Ilhéus, de vovó, de babás de coleguinhas, decidi assar meus bolos para poder viver”.

Mais do que sobreviver, criar bolos e docinhos de festa conciliava a formação na faculdade de belas artes ainda não exercida, o talento para artesanato, desenho e escultura e a possibilidade de levar alegria às pessoas por meio do que ela mais gostava de comer.

Não, não foi a partir daí que a doceira de mão cheia viveu feliz para sempre, mas foi quando descobriu um ofício.

Passou por um divórcio e conquistou uma nova paixão (o chef Fabrício Lemos) por causa dele. Por sua culpa também, cursou a primeira turma de gastronomia, profissionalizou sua produção com a ajuda de novos colegas e se tornou a boleira de casamento mais requisitada de Salvador.

“Isso me trazia um bem-estar muito grande, porque não era só alimento, era arte. Hoje, depois de assar tanto bolo, de usar tanta pasta americana e de fazer tanta feirinha gastronômica, consigo levar um pouco da gastronomia baiana para o resto do país e isso me deixa ainda mais feliz”, desabafa ela.

Desde 2016, ao lado do marido no Origem, Lisiane deixou de ser boleira sem abrir mão “do paladar de menina criada em Amargosa”, no interior baiano. “Frutas da infância como umbu, cajá e licuri, sabores afetivos que trazem emoção, doces culturalmente ricos que eu sei fazer não vão sair de mim nunca” e são essas as notas adocicadas que encerram a experiência no premiado restaurante.

“Em um menu degustação, quando se chega à sobremesa todo mundo já está satisfeito, mas tem que chegar até o final, certo? Por isso busco equilíbrio na composição e contrastes, mas sem disfarçar que os doces brasileiros são mais açucarados, sem trair a minha essência”, avalia a confeiteira, que segue pesquisando ingredientes e ousando cada vez mais.

“Acho a confeitaria brasileira o máximo porque você consegue enxergar uma cultura. Sem tirar o mérito da pâtisserie francesa, ela tinha que ser mais valorizada no meio da gastronomia. Está na hora de esquecer um pouco que o que vem de fora é mais chique, bonito e gostoso e lembrar mais do Nordeste”, acredita Lisiane.

Cookie de caneca do Restaurante Ori / Leonardo Machado Freire

Sem querer e sem a pretensão de se tornar socióloga, ela evoca Gilberto Freyre, sociólogo pernambucano mais reconhecido do país. “Essa influência indireta do açúcar no sentido de adoçar maneiras, gestos, palavras, (…) não nos deve fazer esquecer sua influência direta, que foi sobre a comida, sobre a cozinha, sobre as tradições portuguesas de bolo e de doce”.

A observação do humanista reflete, de certo modo, a essência baiana, a alma nordestina, melosa em estilo e sabores.

Afinal, se nossas frutas são mais açucaradas do que em boa parte do planeta, natural que a doçaria também seja, não é mesmo?

Se elas são carnudas, suculentas, não raro leitosas, é de se deduzir que por aqui se aprecie o doce cremoso, a textura de leite condensado. Inevitável que se morra de amor por doces-colo, seja uma cocada, um pudim ou um brigadeiro. Relevante que a Bahia – e felizmente o país todinho – tenha expoentes como Kafe, Fabi e Lisi.