De onde vem o peixe que você come

Consumo consciente de pescados ainda é desafiador no Brasil, mas pequenas iniciativas de chefs e especialistas ajudam a dar segurança ao público

Saber exatamente a origem dos peixes que se está consumindo é uma questão nebulosa no Brasil
Saber exatamente a origem dos peixes que se está consumindo é uma questão nebulosa no Brasil Unsplash/Divulgação

Juliana Bianchicolaboração para o Viagem & Gastronomia

A carne de peixe é a proteína animal mais comercializada em todo o mundo, superando em variedade de espécies as de porco, frango e gado, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, a FAO.

Não à toa, o número de restaurantes com foco em frutos do mar tem crescido a olhos vistos pelos grandes centros urbanos, especialmente em São Paulo, onde casas como Barú Marisqueria, Kônxa, Cais, Ama.Zo e Mescla têm trabalhado com mesas sempre cheias e filas de espera aos finais de semana.

Mais do que incrementar o volume de pescados consumidos longe do litoral, esses restaurantes têm sido fundamentais para apresentar novas espécies ao público e, assim, contribuir para um consumo diversificado.

O que ajuda a aliviar a pressão sobre a pesca excessiva de várias espécies populares como cação (nome genérico dado a diversos tipos de tubarão), badejo, raia e linguado, por exemplo, ameaçadas de extinção.

“Precisamos ajudar as pessoas a fazerem escolhas melhores”, afirma a chef Telma Shiraishi, do restaurante Aizomê, que desde o início optou por não trabalhar com salmão, por exemplo.

“A culinária japonesa tradicional quase não usa esse peixe, principalmente no sashimi ou sushi, como vemos no Brasil”, conta ela.

Além disso, por uma questão de sustentabilidade, a chef muda constantemente a oferta no cardápio para acompanhar a sazonalidade da pesca regulamentar e a qualidade dos produtos disponíveis a cada dia.

Aizomê, restaurante de culinária japonesa comandado pela chef Telma Shiraishi/ Rafael Salvador/Divulgação

Assim como fazem diversas outras casas quando anunciam no menu apenas “peixe do dia” ou “peixe branco”, de forma genérica.

“Nossa proposta é sempre apresentar algo diferente para o cliente”, diz Bruno Mendonça, do Kônxa, que nas últimas semanas têm colocado na grelha anchovas, tainhas e cara-paus vindos de fornecedores que trabalham com pescadores legalizados no litoral paulista.

Mas o desenvolvimento do paladar pode ir muito além, com carapaus, guaviras, cavalas, sororocas, xaréus, ciobas, olhetes, olhos-de-cão e ovevas, para citar apenas algumas das espécies abundantes na mesma região em diferentes épocas do ano. Basta estar aberto.

Que peixe é?

Saber exatamente a origem dos peixes que se está consumindo é uma questão nebulosa no Brasil, ainda que muitos profissionais ligados ao setor estejam batalhando para tornar a cadeia cada vez mais transparente, legalizada e sustentável.

Um projeto-piloto da bióloga e pesquisadora Cintia Miyaji junto ao Instituto Socioambiental, por exemplo, está começando a taguear com QR Code os peixes capturados no litoral Norte de São Paulo para que, à mesa, o cliente possa verificar o dia, hora e local exato onde o produto foi pescado, como e por quem.

“É um trabalho para estimular não só a conscientização do consumidor, mas para ajudar na gestão de dados. Para sabermos qual o tamanho do estoque de peixes no mar, quais espécies estão liberadas e quais precisam ser protegidas para a perpetuação”, explica a especialista, que chegou a criar um Guia de Consumo Responsável de Pescados, compilando listas de espécies liberadas ou ameaçados para o público se guiar.

A pesca no Brasil não tem dados consolidados há mais de 10 anos. Sabe-se que Santa Catarina é o maior produtor. E São Paulo, Paraná e Espírito Santo começam a monitorar melhor a costa. Mas a maior parte ninguém sabe o que é, de onde vem ou como foi capturado.

Cintia Miyaji, bióloga e pesquisador

“Perdeu-se totalmente o controle do que se pesca por aqui”, reafirma Antônio Amaral, que já foi o principal fornecedor dos chefs mais premiados do país.

Se monitorar a fundo o tipo de pesca praticada (de arrasto, linha de mão, arpão, cerco fixo ou emalhe de fundo, para citar algumas técnicas mais usadas), a regularidade das licenças (de barcos e pescadores), a área exata explorada e o tratamento dado aos peixes até chegar aos distribuidores ainda é missão quase impossível hoje, no Brasil, estar atento ao período de defeso (época em que a pesca, caça ou coleta ficam vetadas ou controladas) pode ser o primeiro grande passo para garantir o consumo consciente de peixes e frutos do mar.

A lista de espécies protegidas muda quase toda semana, de região para região, dependendo da época de reprodução e crescimento de cada espécie.

E não é nada fácil de ser encontrada mesmo no site da Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP/MAPA). “Não existe um lugar que concentre todas as listas e portarias, e mesmo quando se acha são difíceis de interpretar”, afirma Amaral.

Daí o melhor caminho para se informar acaba sendo mesmo os chefs de cozinha que prezam pela escolha de um fornecedor confiável e consciente, e os feirantes, que têm de reabastecer diariamente seus estoques de acordo com a disponibilidade na natureza.

“O aprendizado é gigante quando você trabalha próximo ao fornecedor. Você consegue apresentar peixes saborosíssimos como a prejereba, o paru, e o olho-de-cão, por exemplo. Além de descobrir partes que seriam descartadas e podem virar pratos deliciosos, como o colar, parte mais fibrosa próxima à barbatana, que virou sucesso no Baru”, conta o chef Dagoberto Torres, que faz questão de aproveitar ao máximo a matéria-prima que lhe chega.

“Por muito tempo subestimamos o paladar dos clientes. Parte do nosso trabalho é escolher o que há de melhor em cada momento e apresentar a ele e não ficar amarrado a um único tipo de peixe”, completa.

Um outro fator que deve ser levado a sério quando se pensa em consumo sustentável é o tamanho da pegada de carbono que o peixe ou crustáceo deixará até chegar à mesa.

Afinal, não é preciso fazer cálculos mirabolantes para imaginar que um salmão vindo do Chile ou um panga importado do Sudeste asiático, no mínimo, acarretará na emissão de muito mais poluentes na atmosfera do que uma ostra de Cananeia, um atum pescado próximo a Recife ou peixe serra vindo do Rio de Janeiro.

O caminho para se chegar a um consumo de pescados realmente consciente e sustentável em um dos países com maior costa litorânea ainda pode ser longo.

Mas, certamente, pequenas atitudes como questionar os restaurantes sobre a origem dos insumos já é suficiente para começar a movimentar toda cadeia em busca de respostas e soluções definitivas.