De Minas, com amor

Por Artur Tavares

Com tradição histórica, Minas Gerais inova e olha para o futuro na produção de cachaças

Há quem imagine que a cachaça é um produto de origem e tradição exclusivamente mineiras, mas não é bem assim. Se pararmos para pensar, durante o Brasil colônia e também no período do Império, Minas Gerais nunca foi um estado expoente na produção de cana-de-açúcar. Ali se exploravam minérios e pedras preciosas, e não a agricultura extensiva – reservada, por exemplo, à Bahia e ao Rio de Janeiro. No entanto, hoje alguns dos principais rótulos nacionais nascem ali, misturando conhecimento antigo com técnicas modernas, vontade aguerrida dos donos de alambiques, e uma criatividade que olha muito para o mercado internacional.

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Cachaça Porto do Vianna Tradicional (Foto: divulgação)

Para desvendar um pouco da história da cachaça mineira, passei um agradável final de tarde com Paulo Sagarana, antigo dono dos bares paulistanos Sagarana e Van der Ale, um dos maiores conhecedores da bebida no país hoje, entusiasta e também consultor no mercado de destilados. Ele me contou: “Quando falamos de cachaça mineira, não podemos deixar de mencionar Paraty, no Rio de Janeiro, porque tudo nasceu ali. Tem gente que defende que o primeiro alambique de cachaça surgiu em 1532 na capitania de São Vicente, mas eu acredito que a ideia de produzir cachaça surgiu quando os primeiros alambiques foram desembarcados em Paraty. Lá surgiram as primeiras lavouras de cana.” O que vem a seguir, diz Paulo, não é motivo de orgulho, mas está nas raízes da nossa história como nação: “Tem uma passagem no livro Prelúdio da Cachaça, do autor Câmara Cascudo, em que ele menciona um alemão que montou o primeiro alambique brasileiro em Paraty. Naquela época, se explorava ouro e diamante na cidade mineira de Diamantina. Os tropeiros percorriam o caminho da Estrada Real, 1.200 quilômetros, com escravos e índios, e usavam a cachaça para apaziguar a situação, manter os escravos trabalhando sem reclamar.”

De uma tragédia histórica nasceu o envelhecimento. “A cachaça ia no lombo das mulas dentro de barris, uma viagem de 45 dias. Daí surge a tradição da cachaça mineira ser envelhecida, e a cachaça de Paraty de ter cachaça nova, sem envelhecimento. A cachaça saía branca de Paraty e chegava amarela em Diamantina. Como é mais fácil beber cachaça envelhecida, as pessoas começaram a preferir aquela servida em Minas, que só era daquele jeito porque vinha chacoalhando no barril”, explica Paulo.

Cachaça Século XVIII

Foi na cachaça que nosso povo também encontrou a gênese de outro dos nossos traços históricos, o “jeitinho brasileiro.” Ou, pelo menos, prefiro imaginar que tenha sido assim: “A tradição de madeiras brasileiras surge fundamentalmente no norte de Minas Gerais, um momento em que os produtores de cachaça começaram a buscar independência da Coroa portuguesa, porque barril de carvalho só se conseguia com eles. Desde então, o bálsamo e amburana são as duas madeiras mais usadas no envelhecimento depois do carvalho.”

Naturais do Cerrado, um bioma que ia de Minas até a Bahia, e que hoje representa apenas 8% do território nacional, as duas madeiras ainda são as mais utilizadas na produção de cachaça no país depois do carvalho, cada uma delas conferindo notas sensoriais únicas. O bálsamo traz notas herbais, de anis e erva-doce, enquanto a amburana confere um paladar de especiarias como a baunilha, o cravo e a canela.

É muito difícil quantificar quantos alambiques produzem cachaça no Brasil hoje. São cerca de 5 mil produtores cadastrados no Ministério da Agricultura, embora há quem diga que isso signifique apenas 23% da produção nacional. O próprio Paulo chuta um número em torno de 20 mil alambiques espalhados por todo o país, mas dá números mais exatos em relação à Minas Gerais: “Um alambique mineiro produz, em média, 60 mil litros de cachaça por safra.” Parece muito, mas nosso especialista afirma que a Paraíba tem números ainda mais impressionantes: “Em um estado pequeno como aquele, são 10 milhões de litros de cachaça por ano, quase que completamente absorvidos pelo mercado interno.”

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Aguardente Farrista

Mas, o que beber?

Desde que deixou de ser uma bebida marginal – embora ainda seja bastante rejeitada, se compararmos com a penetração que bebidas estrangeiras, como o gim, têm no Brasil –, a cachaça invadiu empórios, supermercados e bares, com rótulos cujos nomes estão na ponta da língua de muitos consumidores. Sem apontar muitos dedos nem dar nome aos bois, Paulo alerta: “Hoje, temos duas situações. A do produtor de cachaça, e a do standartizador de cachaça. Um produto standard é aquele que já não dá mais conta do mercado. O produtor começa a comprar cana de terceiros. Até aí, tudo bem, porque ele está moendo, destilando e engarrafando. Agora, quando ele não dá mais conta disso, passa a comprar cachaça de outros. Então, reúne todos os produtos e standartiza. Transforma tudo em um padrão único. O cara pega as amostras dos últimos 10 anos, percebe que a mistura não deu a cor anterior e faz o quê? Compra um caramelo, ajusta…”

Sendo assim, a recomendação é sempre procurar fabricantes artesanais de cachaça, confiar naquele rótulo mais simples, naquela garrafa com tampa de cerveja. Com a ajuda de Paulo, reunimos algumas dicas de boas e surpreendentes cachaças mineiras.

Farrista

Há uma diferença entre cachaça e aguardente de cana na legislação brasileira. O primeiro produto só pode chegar até 48% de graduação alcoólica, sem adição de açúcar. No segundo caso, pode chegar até 54% de graduação alcoólica, com uma pequena adição, embora bons produtores não usem desse artifício, já que não precisam mascarar má qualidade. A Farrista, feita em Martinho Campos, é uma aguardente de melaço, uma espécie de cachaça pasteurizada, no qual o caldo de cana é fervido antes da destilação. É envelhecida em Jequitibá, e por isso mantém a coloração branca.

1000 Montes Carvalho 3 AOB

1000 Montes Carvalho 3 AOB

Produzida em Faria Lemos, divisa de Minas com Espírito Santo, a 1000 Montes Carvalho é envelhecida em um processo de soleira horizontal, por três anos. A bebida vai trafegando em pelos barris com tostas diferentes, cada um deles conferindo características particulares: mais tânicas e ácidas, notas de caramelo, ou de fumaça, couro, e de embutidos animais.

Porto do Vianna Tradicional

Um dos alambiques brasileiros mais premiados internacionalmente hoje é a Gouveia Brasil. Localizada na cidade de Turvolândia, no sul de Minas, ela tem uma linha invejável de cachaças, licores e até de aguardentes de cana – que chegam à graduação máxima de 54%. Seria fácil indicar a Gouveia Brasil Extra Premium, um blend de cachaças que passam 5 anos em tonéis de carvalho, 5 anos em dornas de jequitibá rosa e 10 anos em barris de amburana, mas nossa recomendação é a Porto do Vianna Tradicional. Uma branca pura que apenas repousa em barris de inox antes de ir para o envaze, tem aromas exóticos de mel.

Século XVIII

A Século XVIII é um alambique em Coronel Xavier Chaves, que produz cachaça há 300 anos, sem interrupções. Hoje, o dono do alambique é Fernando Chaves, da sétima geração de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, de quem é sobrinho tetraneto. É uma cachaça como tem que ser. Sem diluição, com o máximo que a legislação permite de álcool, 48%, e sem envelhecimento. O Nando é adepto da cachaça pura, sem mistura.

Cachaça Severina do Popote

Severina do Popote

Produzida na cidade de Araçuaí, bem próximo de Salinas, é uma cachaça produzida em alambique de fogo direto utilizando técnicas de “fermentação caipira”, nas quais as leveduras do ar agem no processo de fermentação do caldo de cana antes da destilação. Fica até 8 anos em barris de jequitibá e bálsamo em uma proporção 30/70. Para completar, a rolha de cortiça dá um toque especial ao produto, que vem em linda garrafa verde.


Artur Tavares

Com passagens pela Rolling Stone Brasil, MTV e o programa CQC, da TV Bandeirantes, Artur Tavares hoje é editor das revistas Carbono Uomo e Corriere Fasano. Não é bem um especialista em bebidas, mas é ótimo de copo.