Da terra à mesa: chef indígena compartilha sabores e saberes de sua culinária

É com seu cocar, adereços e pinturas faciais que Kalymaracaya, uma das primeiras chefs de cozinha índia do Brasil, quer levar a gastronomia de seu povo para todas as regiões e paladares

Hî-hî, bolinho de mandioca na folha de bananeira, prato típico indígena (Foto: Luna Garcia)

Mandioca, batatas, batatas doces, milho, abóbora, inhames, cará, castanha do Pará e de Bocaiúva, Pequi, Cumbaru, Mel de Jatei, Palmito Guariroba, Bacuri, Milho Saboró, Guavira. Folha de Taioba, Trevo de Três Folhas, Café de Fedegoso, Banha de Quati, Banha de Porco Monteiro. Todos eles são ingredientes da culinária indígena e são a base da alimentação e das maiorias de suas receitas. Alguns alimentos desta lista são, de fato, mais conhecidos nas cozinhas brasileiras, visto que nascem de nossas terras, plantados e colhidos em solo nacional. Outros, aguçam a curiosidade porque são pouco – ou nunca – utilizados nas grandes capitais. O motivo quem conta é Kalymaracaya, primeira chef de cozinha indígena do país “O cenário da gastronomia indígena brasileira é muito pobre em estudos e divulgação. Eu sou uma das únicas que desenvolvo este trabalho. É muito ruim saber que isto acontece durante anos.”

Mãe terra. Os hábitos alimentares dos índios são constituídos essencialmente de alimentos que a natureza dá, respeitando seu ciclo, estações do ano, solo, tempo. Quem dita o “cardápio” são as safras. Respeita-se também o sabor natural porque não há a presença de muitos temperos em seus preparos. É ali, entre as mãos ou em um balé de talheres, que o alimento é manipulado e orquestrado para que seu real sabor seja enaltecido e, logo depois, apreciado. “Na culinária indígena não tem certo e errado. Por exemplo, nós não temos prato de entrada e prato principal; não temos pontos da carne específicos, o que temos são carnes muito bem passadas. Não consumimos carne mal passada. Quando faço o Hî-hî (bolinho de mandioca envolto na folha de bananeira), prato típico, não coloco sal, nem açúcar. Isso é preservar a essência do prato.”

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Chef Kalymaracaya (Foto: Luna Garcia)
Chef Kalymaracaya (Foto: Luna Garcia)

População indígena. Segundo resultados preliminares do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010, e revisitado em 2020, a população indígena é de aproximadamente 900 mil indígenas (448 mil são mulheres) dos quais cerca de 500 mil vivem na zona rural, e cerca de 310 mil habitam as zonas urbanas. Em todos os Estados, inclusive do Distrito Federal, há populações indígenas. Hoje, ainda segundo a pesquisa, há 305 diferentes etnias indígenas registradas e 274 línguas.

Kalymaracaya pertence a etnia Terena, nasceu na aldeia Bananal, Distrito de Taunay de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul. Faz questão de usar cocar, adereços e pintar o rosto “tudo para compor minha cultura”. É cozinheira e, além de preparar pratos típicos de seu povo, ainda viaja Brasil afora para propagar não só os sabores, mas os saberes indígenas. “Ministro aulas e cursos de gastronomia (é pós-graduada em História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira) e sempre peço aos meus alunos para não só reproduzirem a receita, mas para falarem a outras pessoas que aquilo é a nossa verdadeira gastronomia. Luto todos os dias por isso e quero um dia que seja reconhecida como a melhor do mundo. Me encanta a forma de cuidados que temos com a natureza, tudo é extraído para o próprio consumo.”

Para além de respeitar a origem e o sabor natural das comidas, há no ato de preparo um conhecimento ancestral, milenar, que guia grande parte do fazer culinário e perpetua, dia a dia, técnicas gastronômicas próprias dos índios. “Desde pequena ajudava minha avó, tia e mãe a prepararem os alimentos. Estava sempre por perto da cozinha, andava nas matas atrás de algum alimento, dos frutos do cerrado. Achava tão bonito, a arte de transformar ingredientes em comida.”

Ingredientes que alimentam e curam. Além do prato, frutos e óleos têm espaço reservado nos procedimentos curativos dos índios e embelezadores também. São as ervas medicinais, imprescindíveis à cultura. “Utilizamos o Óleo de Bocaiúva ou Pequi ou algum outro Óleo 100% Vegetal para fortificar os cabelos, impedir queda capilar, tratar feridas na pele e até rejuvenescimento facial.”

Kalymaracaya compartilhou com o CNN Viagem&Gastronomia a receita do Hî-hî:
Ingredientes:
1 Kg de mandioca ouro (amarela) “in natura” sem o pavio
10 folhas de bananeiras inteiras
3 panos de algodão
6 folhas de bocaiúva ou 1 rolo de barbante
3 litros de água

Modo de preparo:
Limpe bem as folhas de bananeira, retire os talos e passe as folhas na chama do fogo. Rale a mandioca na parte mais fina do ralador, adicione 1 litro de água e mexa bem. Separe um pano de algodão. Você vai espremer todo o líquido da mandioca nele e deve repetir o processo até retirar todo o amido dela, deixando-a sequinha.

Quando isso acontecer, coloque três colheres de sopa na folha de bananeira e enrole. Cuide para que fique em modelo retangular. Amarre com a folha de bocaiúva ou barbante. Depois, coloque 2 litros de água em uma panela e disponha-os, o tempo de cocção é de 30 minutos em fogo alto.