Um pedaço da Borgonha em São Paulo

Por Artur Tavares 

Especializada em vinhos da área francesa, a Anima Vinum promove uma viagem sensorial à uma das melhores regiões produtoras do planeta

Dos poucos consensos que existem hoje, um deles diz que a região francesa da Borgonha produz alguns dos melhores vinhos do planeta. Com uma área pequena, de pouco mais de 31 km² e população que não ultrapassa 1.7 milhão de pessoas, é lar de cerca de 15 mil produtores, todos eles dedicados exclusivamente às uvas Pinot Noir e Chardonnay – e algumas pequenas exceções, como a Gamay e a Aligoté. Não se trata de uma restrição de denominação de origem, mas sim de maturidade: ali ficou claro que tanto o solo quanto o clima eram perfeitos para as variedades, que tornam-se joias nas mãos de vignerons experientes.

Alaor Lino e sua filha Raquel
Alaor Lino e sua filha Raquel (Foto: divulgação)

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Enquanto muitas distribuidoras de vinho brasileiras se dedicam a comercializar produtos vindos das mais diferentes regiões do mundo, a Anima Vinum, no bairro paulistano de Moema, se especializou na Borgonha. Com um catálogo rico que chega a quase 200 rótulos, a empresa de Alaor Lino e sua filha Raquel funciona há quatro anos oferecendo uma verdadeira viagem pelas cinco áreas da Borgonha, Chablis, Côte de Nuis, Côte de Beaune, Côte Chalonnaise, Mâconnais, um deleite para qualquer amante ou curioso no mundo do vinho.

Industrial de sucesso no ramo de matérias-primas para empresas cosméticas, Alaor viajava muito à Europa para entender o mercado de beleza por lá. Em uma dessas idas à França, foi apresentado por um amigo a um especialista em vinícolas da Borgonha. Decidiu imediatamente montar a Anima Vinum, que funcionou primeiro como e-commerce e distribuidora para restaurantes – hoje já são 56 apenas em São Paulo – e há dois anos como ponto físico.

Conversar com o pai e a filha – acompanhado de algumas taças, é claro – é um deleite. Mesmo que você não entenda absolutamente nada da Borgonha, vai sair da Anima Vinum com um pouco de propriedade sobre o assunto. Sobre a região, ele explica: “Se estamos falando de uma região que conceitualizou que só tem que haver uvas Pinot Noir e Chardonnay, ora, tem que haver uma razão muito importante para isso. São uvas que se adaptaram muito bem na Borgonha. É uma condição de state of art, com a vantagem de ter a natureza ao favor delas. Se o homem for sábio, um artista, e capaz, fará algo diferente. O barato é descobrir essas nuances. Você toma vinhos das cinco regiões e consegue identificar aspectos de cada uma delas. Consequentemente, você viaja pela Borgonha através do vinho. É viver a cultura daquele povo.”

Anima Vinum, especializada em vinhos da região da Borgonha, em São Paulo (Foto: divulgação)
Anima Vinum, especializada em vinhos da região da Borgonha, em São Paulo (Foto: divulgação)

Diferente de Bordeaux, onde se produzem alguns dos vinhos mais caros do planeta, a Borgonha tem aspectos mais regionais. De acordo com Lino, é quase um ajuntamento de vilarejos amistosos, que preservam suas tradições centenárias: “Vale a pena ir até a Borgonha para conversar com os vignerons de lá. Eles são amistosos, receptivos, têm sabedoria e gostam de falar sobre o conhecimento deles. É diferente de outras áreas mais competitivas. A Borgonha é pequena, os vinhos já estão todos vendidos. Por isso eles têm prazer em falar uns com os outros, em dividir descobertas. É estar em um convívio harmonioso e criativo.”

A tradição faz com que a grande maioria dos vinhedos da Borgonha produzam safras bastante reduzidas, que não ultrapassam 10 mil garrafas. São poucas grandes companhias, e muitos pequenos vignerons. Além disso, são produtores preocupados com a natureza: “A biodinâmica é uma proposição bastante válida, mas o que importa é tratar da vinha de maneira a não incorporar produtos químicos, fazer tratamentos mais naturais quanto possível. O que acontece: de tempos em tempos é preciso fazer uma replanta, uma modificação em alguma determinada área, e aí nesse momento a planta nova vai se comportar de maneira diferente das antigas. Ali não dá para fazer tratamentos tão naturais. É preciso seccionar essa área, protegê-la com alguma coisa química – menos danosa – para recuperar. A planta é uma coisa viva, progride o tempo inteiro, a raiz se aprofunda cada vez mais em busca de nutrientes originais, mas também sofre, deixa de ser produtiva”, explica Alaor.

Após a colheita, a filosofia do natural também dita a regra por lá: “O processo de vinificação é muito natural. É o verdadeiro conceito de safra. Em se tratando da mesma uva e da mesma região, com coisas muito parecidas, o que difere as safras é justamente o tipo e a quantidade de micro-organismos presentes na plantação. Quando se colhe a uva, ela já contém açúcar e micro-organismos. O vigneron não adiciona nada. É uma fermentação muito natural, que acontece imediatamente após a colheita. A fermentação alcoólica então acontece até cerca de 13 graus, até ser interrompido para a fermentação malolática, que transforma ácidos duros em ácidos láticos, de mais fácil digestão. Esse processo pode ocorrer em até dois anos, varia de brancos para tintos, e resulta em um vinho estável sem a adição de sufitos. Os benefícios são leveza e estabilidade.” Por isso, brinca Alaor, “quando você toma um vinho da Borgonha, no dia seguinte só dá saudade. Não dá dor de cabeça, nada. E, quando adicionam sufitos, é ao longo do tempo, e não em uma única dose. Assim, quando chegar ao final do processo, está estabilizado. É um consenso da Borgonha.”

Da região francesa, talvez os vinhos mais conhecidos aqui no Brasil sejam os brancos produzidos na região de Chablis, embora se entenda que a uva Pinot Noir dá alguns dos tintos mais refinados do mundo. Na Anima Vinum, Raquel diz que os Chardonnay são bastante procurados: “Em decorrência da grande qualidade, hoje se procuram muitos brancos da Borgonha. Talvez até mais do que os tintos. Temos apenas dois rosés aqui, mas são vinhos com dois anos de produção. É um conceito de vin terroir.” Ela diz também que “Para os amantes de Brunellos, Bordeauxs e Chiantis, é difícil entrar no universo da Borgonha. É como time de futebol. Eles defendem com unhas e dentes.”

Na Borgonha, o solo é rico, uma mistura de terra, calcário, argila, e por vezes até fósseis marítimos, e por lá são diversos territórios classificados como Grand Cru e Premier Cru. Alaor explica que os vinhos podem ser guardados por pelo menos uma década antes de serem consumidos, mas que não há, necessariamente, essa necessidade: “Os Premier Crus e Grand Crus, têm um tempo de guarda bastante elevado. A guarda está ligada à qualidade da terra. Você tem um conceito de consistência do vinho. A maioria dos vinhos produzidos na Côte de Nuis são vinhos de guarda.” No entanto, “cada vez mais escutamos que é menos importante deixar o vinho envelhecer. Há uma tendência de tomá-los mais frescos. Há muitos consumidores entrando agora no mundo do vinho, e mesmo eu, se tivesse guardado vinhos quando comecei a experimentar, teria uma adega de 20, 30 mil vinhos. Mas, na minha casa, os mais antigos têm cerca de 7 anos. Houve um avanço tecnológico enorme, os vinhos já saem prontos. A guarda era para melhorar. Alguns exemplos, onde se têm terrenos mais densos, melhoram, é claro. Mas acredito que qualquer vinho de lá, guardado cinco anos, já vai ser espetacular.”

A Anima Vinum ainda conta com algo único no mundo, a única coleção de vinhos Hospices de Beaune fora da Borgonha. Uma espécie de Santa Casa de Misericórdia fundada em 1443 na cidade de Beaune, ela tem como tradição produzir alguns dos melhores vinhos da Borgonha, cuja comercialização é toda revertida para a caridade. Quase 600 anos depois, o Hospices tem quase 60 hectares de terras doados pelos vignerons da Borgonha, que produzem 48 rótulos diferentes, entre brancos e tintos. A Anima Vinum não tem, de acordo com Alaor, apenas três ou quatro deles disponível para a venda.

Nossa entrevista com Alaor e Raquel foi feita, é claro, acompanhada de alguns dos melhores vinhos disponíveis na loja. Essas são nossas recomendações:

Domaine Luquet Roger – Pouilly-Fuissé 2014
Domaine Luquet Roger – Pouilly-Fuissé 2014

Domaine Luquet Roger – Pouilly-Fuissé 2014

Tem uma acidez aromática, corpo presente e um sabor bastante frutado. Um vinho da região de Mâconnais que não passa por madeira.

Domaine Gondard-Perrin – Viré-Clessé 2014

Um vinho que preserva uma pequena taxa de açúcar, cerca de 1%, durante a fermentação alcoólica. Trata-se de uma característica única do enclave das regiões Viré e Clessé. O dulçor fica presente no aroma, com um paladar de final seco. Fica 18 meses em barricas de madeira.

Gerard Mugneret – Bourgogne Passetoutgrain 2015

Um dos poucos exemplares da Borgonha a misturar Pinot Noir com Gamay. Tem um rompante de frutas vermelhas dentro da estrutura complexa do Pinot Noir. De produção limitada a pouco mais de 3.700 garrafas, fica 14 meses em barricas de carvalho.

Eric et Emmanuel Dampt Vignerons – Le Parc du Château Bourgogne Pinot Noir 2012

Notas mais amadeiradas, com toques de chocolate, e um dulçor bastante especial, semelhante a um suco de tomate, resultantes de uma guarda de apenas 40% em barricas de carvalho, por 18 meses.

Eric et Emmanuel Dampt Vignerons Irancy 2012
Eric et Emmanuel Dampt Vignerons Irancy 2012

Eric et Emmanuel Dampt Vignerons Irancy 2012

Um vinho com corpo denso, taninos presentes e também uma nota bastante característica de tomates. Apenas 35% do vinho fica em barricas de carvalho, por um período de 13 meses.

Domaine Arnoux Père et Fils – Les Beaumonts 2015

Com uma cor que varia entre o rubi e o roxo, tem notas de frutas vermelhas e negras. Bastante delicado.

 Domaine Arnoux Père et Fils – Les Pimentiers 2015

De coloração violeta, tem nuances de pimenta e pimentão, e um dulçor no final.

Domaine Sylvain Pataille – Marsannay 2014

Um ótimo exemplo de vinho biodinâmico feito na Borgonha. Tem tons vermelhos vivos turvos. O aroma de mel é bastante presente, com um paladar que também alcança frutas vermelhas.

Hospices de Beaune –Cuvée Gauvain Volnay-Santenots 2015

Um grande exemplo da Hospices de Beaune, de tons roxos, e sabor bastante potente, com notas que lembram um pouco terra, ainda que com dulçor e taninos bastante presentes.

Hospices de Beaune – Cuvée Joseph Menault Saint-Roman 2015

Um Chardonnay de aroma intenso e bela mineralidade no paladar. Cultivado em vinhas que estão a 400 metros de altura em relação ao nível do mar. Passa 12 meses em barrica.


Artur Tavares

Com passagens pela Rolling Stone Brasil, MTV e o programa CQC, da TV Bandeirantes, Artur Tavares hoje é editor das revistas Carbono Uomo e Corriere Fasano. Não é bem um especialista em bebidas, mas é ótimo de copo.