Como Charlô Whately reinventa a gastronomia paulistana há quatro décadas

A criação mais recente do restaurateur à frente do bistrô paulistano que leva seu nome é uma rotisserie on-line, lançada durante a pandemia - ele não para de lançar tendências

Após uma reforma de 10 meses, o Charlô reabriu com apenas 50 lugares
Após uma reforma de 10 meses, o Charlô reabriu com apenas 50 lugares Murillo Mendes/Divulgação

Luisa Alcantara e Silvado Viagem & Gastronomia

“Você esteve aqui ontem à noite também, não é?”, pergunta para um cliente. “Mande um beijo para sua mãe e fale para ela vir, faz tempo que não a vejo”, diz, para outro. “A batedeira quebrou? Eu tenho uma em casa, pego e trago amanhã enquanto essa fica no conserto”, explica para um funcionário da cozinha.

Assim, falando com cada cliente – muitos dos quais chama pelo nome – e cada colaborador, o restaurateur Carlos Thomaz Whately Neto, mais conhecido como Charlô, 66 anos, comanda sua principal casa, o Bistrô Charlô, no bairro Cerqueira César, em São Paulo.

São 33 anos à frente de um dos mais badalados restaurantes paulistanos, em uma história que começou com um bico como cozinheiro na casa de uma senhora em Paris. Aliás, começou um pouco antes: Charlô fazia faculdade de administração no Mackenzie e já trabalhava na área financeira, mas não estava se encontrando no meio dos engravatados e no corre-corre da Bolsa de Valores.

Conversou com o pai e a mãe e, no fim de 1980, decidiu se aventurar na capital francesa em um emprego que seu irmão havia lhe arranjado. Foi com madame Radot que ele descobriu que tinha talento para as panelas. Pegava os livros de receita dela, ia à feira e ao mercadinho do bairro comprar os ingredientes e preparava pratos que surpreendiam a patroa.

“O PATÊ” do Charlô, um clássico que virou sua marca registrada/ Murillo Mendes/Divulgação

Foi cerca de um ano assim até que a saudade bateu e Charlô retornou ao Brasil. Para a faculdade de administração não iria voltar, mas precisava fazer algo, dar um rumo para sua vida. Ele já era um cozinheiro, familiares e amigos elogiavam suas criações e, então, sua mãe começou a falar para as amigas do patê de fígado de galinha com conhaque e especiarias que o filho recém-chegado de uma temporada na França fazia.

“Um dia, ela me ligou bem cedo, eu estava dormindo, e disse que eu teria que fazer uma entrega no dia seguinte”, lembra ele. As encomendas foram realizadas e, só pela propaganda boca a boca, aumentando cada vez mais.

Cara de pau, como ele se considera, Charlô foi um dia ao Santa Luzia, um dos principais empórios de São Paulo, falar com o dono e passa a vender seu patê por lá também, ainda em pequenas quantidades. Era tudo preparado na cozinha da avó Albertina, que morava no mesmo prédio que ele, na esquina da alameda Franca e rua Peixoto Gomide.

Charlô fazia tudo, da receita à entrega e à contabilidade. “Tinha um caderninho que funcionava como livro-caixa. Conta de padeiro mesmo, anotava quanto gastava, quanto vendia…”, lembra ele, que até ficar no ponto de degustação do mercado ficava.

O negócio dos patês estava dando seus primeiros passos ainda quando Charlô recebeu uma encomenda de 40 quilos para a festa de Réveillon do Clube Alto de Pinheiros. A loucura foi tanta que ele teve que pedir para usar a geladeira de vizinhos e amigos, pois não tinha espaço para toda aquela produção, como ele conta no livro “Charlô Of Course”, uma mistura de lembranças autobiográficas com receitas de saladas, sopas e sobremesas, entre outros pratos – inclusive o patê que deu o pontapé inicial em sua carreira.

Com o sucesso que estava fazendo, abriu, em 1985, sua primeira loja, no Itaim Bibi. Além de vender patês e bolos no local, o serviço de bufê de Charlô também foi se ampliando. Eram festas e mais festas com suas comidas e seu serviço.

E, apenas três anos depois, ele inaugurou o Bistrô Charlô, no mesmo endereço em que funciona até hoje, na rua Barão de Capanema, 450. Mais dois anos e ele aumentou sua produção, passando a vender no atacado. “Foi tudo acontecendo por acaso na minha vida, nada foi muito planejado”, garante ele.

O arroz de polvo e alho-poró: o polvo é cozido com vinho tinto/ Murillo Mendes/Divulgação

Um outro acontecimento que marcou sua carreira foi quando ele foi convidado para comandar o restaurante do Jockey Club de São Paulo, no final dos anos 1990. O banqueteiro representou uma época de renascimento do local, onde ficou por cerca de 15 anos.

Mais recentemente, em 2015, Charlô inaugurou o Cha Cha, casa mais informal que abre do café da manhã ao jantar no Itaim Bibi. Pratos como a torta de frango com mix de folhas, o cupim braseado com farofa aligot e o mac’n cheese com camarão fazem sucesso no local, que atende principalmente o público que trabalha nos arredores da avenida Faria Lima e quer comer algo bom e rapidamente.

O empreendimento modernoso foi aberto em sociedade com Felipe Sigrist, sócio também do Buffet Charlô, que já realizou festas em destinos como Paris, Saint Barth e Nova York, e da Casa Charlô, espaço de eventos inaugurado em 2017, no Itaim. Ali são organizadas festas – de casamentos a eventos corporativos – para públicos de cem a até mil pessoas, oferecendo todo o conhecimento que Charlô adquiriu ao longo dos anos trabalhando com gastronomia. Agora, durante a pandemia, a Casa ficou parada, mas Charlô comemora que festas e outros eventos estão começando a voltar.

Mesmo com todos os seus negócios e tino para a cozinha, o restaurateur – que embora pareça francês, tenha apelido afrancesado e exerça uma profissão tipicamente ligada à França, é paulistano – gosta de destacar que não inventa nada. “Antes, eu pesquisava referências muito em livros de receita e em viagens, principalmente a Paris. Nos últimos anos, a internet passou a ser uma fonte para a criação dos pratos também”, diz ele.

Nada se cria

Ele pode dizer que não inventar receitas, mas, como a maioria dos donos de restaurantes da capital paulista, também teve que se reinventar durante a pandemia para não fechar as portas, o que ocorreu com aproximadamente 50 mil estabelecimentos no estado (300 mil no país), segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo (Abrasel-SP). Outro dado alarmante do órgão foi o encerramento de 1,2 milhão de postos de trabalho em todo o Brasil.

Com a casa fechada nos primeiros meses após a chegada da Covid-19 ao Brasil, Charlô precisou ir à Justiça para pedir desconto no aluguel e demitiu 40 funcionários dos cerca de 80 que tinha. Também, pudera: em março de 2020, seu faturamento caiu 95%, atingindo menos de R$ 20 mil, segundo processo no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Parte dos ganhos vieram do então recém-lançado serviço de e-commerce de congelados que, depois, passou a incluir produtos frescos também, como o conhecido bolo de nozes de Charlô, vendido desde o começo da trajetória do restaurateur. “Com certeza, a pandemia foi o período mais difícil que já vivi”, conta ele.

O Bistrô sobreviveu ao abre-e-fecha por conta da quarentena e, se nesses 33 anos a casa passou por algumas reformas, foi em 2021 que ocorreu a mais longa, com duração de dez meses. O restaurante foi reaberto em outubro, menor, com 50 lugares e espaço físico de rotisserie e pâtisserie logo na entrada, após uma área aberta para a rua. “É quase como uma volta ao passado, porque, quando abri aqui, vendia comida para levar também”, lembra ele.

O novo cardápio também veio com mudanças, com a inclusão de pratos mais baratos. “Comer em restaurante não precisa ser caro”, diz ele. “Você pode vir com amigas e almoçar duas ou três entradas, pagando R$ 80 no final.” Há porções, como a de croqueta de pastrami e batata Asterix, por R$ 49, por exemplo.

Nesse sentido de baratear, a costelinha de porco é um dos ingredientes que podem entrar no menu. E receitas que levavam itens mais caros, como o camarão pistola, caíram fora. “Não dá para fazer um prato barato com esse ingrediente”, afirma o restaurateur. Já o picadinho do Bistrô, um dos carros-chefe da casa, segue firme e forte, acompanhado de arroz, feijão preto, farofa, ovo caipira poché, banana e couve.

É em busca desses e outros sabores que os clientes estão voltando a encher a casa – nos finais de semana, o espaço tem atraído cerca de 200 pessoas por dia.

Para continuar como uma referência da gastronomia paulistana, Charlô está sempre inovando. Em janeiro, ele deve adicionar mais um item ao cardápio do Bistrô: a paçoca salgada. “Não é um prato comum, que a gente vê nos restaurantes por aí. Eu gosto de trazer isso, algo simples e diferente”, diz.

Na cabeça do restaurateur que não para de lançar tendências, sempre há planos para o futuro, como abrir outros bistrôs em São Paulo. “Esse novo modelo da casa, menor, é mais fácil de replicar.” Agora, é aguardar para ver – e experimentar – o que vem por aí.

O sorriso de Charlô Whately é inconfundível/ Murillo Mendes/Divulgação